sandra aka margarete ~ acknowledgeyourself@gmail.com
 

 
 
atenção: post enorméééé, não resisti...



«CARTA AO FUTURO

 

I

 

Meu amigo: 

  

(DO TEMPO E DO LUGAR)
ESCREVO-TE para daqui a um século, cinco séculos, para daqui a mil anos… É quase certo que esta carta não te chegue às mãos ou que, chegando, a não lerás. Pouco importa. Escrevo pelo prazer de comunicar. (...)

 

(O ENCONTRO ORIGINAL)
Mas a vida está cheia do seu dom original e só espera de nós um pouco de atenção: um pouco de humildade, de uma intima nudez. (…) Também tenho a minha parte de robot e não a nego. Mas sei que há outra coisa à minha espera e que só depois dessa é que não há mais nenhuma. Tenho apenas esta vida para viver, e seria quase uma traição que eu faltasse à sua entrevista (…).

 

(O ROBOT)
 (…) mas a profunda fraternidade – tu o saberás, meu amigo – não é uma cadeia de braços, mas uma comunhão do silêncio, uma comunhão do sangue. (ON MOURRA SEUL) Toda a vida que se cumpre esgota a comunicabilidade onde quer que se anuncie. Assim, a hora da sua verdade não é uma hora de comício, mas de solidão final. A máscara que nos defende não tanto contra os outros como contra nós próprios (porque se nós a montamos não é tanto para que os outros nos identifiquem por ela, como para que nós acabemos de por ela nos identificarmos), essa mascara que é de comédia, ainda quando de tragédia, é bem vã nos instantes derradeiros de qualquer situação, porque então os olhos que nos vêem não nos vêem de fora mas de dentro. (…)

 

(REALIDADE IMEDIATA) 
Ah, a realidade imediata reconforta, nem que seja a realidade de uma pedra que nos atirem. Porque uma pedra é consistente, conhece-se, sem alarme, na dureza com que nos cria as próprias mãos, nos define, sem sombras, a cabeça que nos feriu, o sangue que nos inundou a face. (…)

 

II

 

(O DIVERTIMENTO)
 (…) só entendemos a morte quando a sabemos de cor, quando ela não significa já a aniquilação de uma vida como a nossa, mas é apenas as margens desta vida que a prolongam, o nada que nunca a pode aceder, a pode pôr em causa, quando ela é o contorno que não lhe altera a sua (a nossa) perenidade.



III

 

(VERDADE INDIFERENTE, VERDADE EXISTENCIAL)
 A verdade e o erro do que nos põe em causa o destino são o saldo indistinto de uma indistinta procura do nosso equilíbrio interior. A razões que o justificam são como a desculpa de quem é apanhado em flagrante: as suas raízes mergulham onde já não as sabemos. (…) Um problema de verdade-erro só é nosso quando o sangue o reconhece.

E no entanto – ou por isso, porque nos afectam a vida – são essas verdades estalão visível para aferi-las, as que mais profundamente nos afirmam ou mais radicalmente recusamos: tais verdades não se aferem por um estatuto, mas são antes a nossa própria carne, a tessitura do que somos, a indizível realidade do nosso ser – e nada há mais evidente que a nossa própria pessoa.

 

(CRISTO E A CONDIÇÃO HUMANA)
 Mas a voz escrava se não cala no homem, porque suporta a liberdade exige um esforço descomunal, superior às forças humanas (…)

 

(DESTRUIR, CONSTRUIR)
 (…) Destruir, negar. As mãos que desmantelam a ordem envelhecida são ainda a nossa própria vida, transmitem-nos a certeza de que há um mundo e nós no meio dele, identificam a inteira verdade do nosso corpo que age e é eficaz; e o rumor dos nossos gritos afoga as vozes obscuras e inoportunas, a nossa voz derradeira, ilude-nos a resposta à interrogação que nos espera, inventa-nos no NÃO essa ilusão de plenitude que nós buscamos no SIM.

 

(RECRIAÇÃO DO MUNDO)
 (…) que ninguém se espante do nosso espanto, nem que ninguém sonhe escravizar a nossa melancolia (…)

 

(DO MUNDO DOS DEUSES AO MUNDO HUMANO)
 (…) Que ninguém nos demonstre o nosso erro nem a nossa verdade: mais forte que toda a demonstração é a evidência feita carne e ossos e sangue e nervos, é esta plenitude sem margem de sermos. (…)

 

(VERDADE INTRANSMISSÍVEL)
 (...) que ninguém nos demonstre a nossa verdade ou erro (…) Como se a irredutível verdade da morte de alguém, que conhecemos, exigisse a coerência de uns olhos enxutos: mais forte que a certeza da inutilidade da dor é a absoluta presença da dor. Na ilha deserta, a aflição do abandono não reconduz o mundo que se perdeu: é o irremediável sinal de um recomeço, é o anúncio da vinda de todo o homem para recriar o mundo. (…)

 

(SAUDADE DE DEUS, SAUDADE DA INFÂNCIA)
 A saudade de Deus não é o sonho do seu regresso, como a saudade da infância não é um sonho de infantilismo: é a inexorável verificação da permanência de uma interrogação para a qual já não nos basta a resposta que nos deram. Sabemos hoje assim, meu amigo, que um Deus não é um ídolo sonhado a ouro e a incenso, diante do qual nos sintamos redimidos pela renúncia e esquecimento, é antes o espelho da interrogação original que nos veio no sangue. (PERMANÊNCIA DA INTERROGAÇÃO) O espelho quebrou-se, a interrogação ficou. (…) o sonho de ainda ver é mais forte do que a certeza de que os olhos são inúteis. (…)

 

(ILUSÃO E PLENITUDE) 
E depois, para muitos de nós, que vale a certeza de uma terra desabitada em face de uma ilusão de uma terra povoada de fantasmas? Se há uma vida a cumprir em unidade, se cada qual, dentro do seu mundo, é uma positividade sem margens – toda a vida está certa, para aquele que a vive, dentro da ilusão ou do erro.

 

IV

 

(OS LIMITES DA CONDIÇÃO HUMANA) 
(…) só depois da falência das nossas invenções nos descobrimos a nós, os inventores. (…) 

  

(PROJECÇÃO DA VIDA NA MORTE) 
(…) Pobres palavras vãs: um «nada» imaginamo-lo sempre como algo que é… (…)

 

(O QUE HÁ A REDIMIR) 
(…) Colaborar com a vida, aceitar a validade de uma norma, forjar uma regra para a distribuição da nossa acção e interesse – sim. (REDENÇÃO DESDE AS RAÍZES)  Mas é impossível, antes disso, desviarmos os nossos olhos da fascinação da vertigem, e vermos, vermos bem, de que fundas raízes gostaríamos de entender tudo quanto realizássemos. (…)

 

V

 

(REDENÇÃO E «FUGA»)
 (…) Um acto de desespero é bifronte e enganador porque disfarça o peso daquilo que se evita com a própria dificuldade do acto com que se evita. A submissão aos «princípios», investidos de transcendência, são uma forma banal dessa fuga e desespero. (…) 

 

(A INILUDÍVEL VERDADE) 
(…) não há já hoje para nós um testador da vida, mas apenas a própria vida, o seu milagre, num jogo da contingências…

 

(ARTE E EVIDÊNCIA)
 Assim a arte, meu amigo, não anula a nossa condição, mas precisamente esclarece-a, até à vertigem, diante do nosso desassossego. (…)

 

(REDENÇÃO PELA ARTE)
 A redenção de nós próprios não a procuramos em nada separado de nós, mas na vivência profunda dos nossos inexoráveis limites. (…)

 

VI

 

(O ABSOLUTO DA ARTE) 
DECERTO dirás que é pouco e que este sonho de absoluto é um mísero arremendo do outro ou dos outros que se perderam, é um pobre absoluto de segunda ordem… porque negá-lo? Mas que sabemos nós daquilo que não somos? Quem nos define a vida e a pessoa que não somos? (…)

 

(EMOTIVIDADE E VERDADE) 
Porque é dentro da emotividade que o mundo tem sentido, e a verdade humana, e a orientação fundamental de tudo o que nos orienta. (…)

 
         Saúde, amigo.

 

                                      Vergílio Ferreira

 

                 Évora, Dezembro de 1957»

 

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