atenção: post enorméééé, não resisti...
«CARTA AO FUTURO
I
Meu amigo:
(DO TEMPO E DO LUGAR) ESCREVO-TE para daqui a um século, cinco séculos, para daqui a mil anos… É quase certo que esta carta não te chegue às mãos ou que, chegando, a não lerás. Pouco importa. Escrevo pelo prazer de comunicar. (...)
(O ENCONTRO ORIGINAL) Mas a vida está cheia do seu dom original e só espera de nós um pouco de atenção: um pouco de humildade, de uma intima nudez. (…) Também tenho a minha parte de robot e não a nego. Mas sei que há outra coisa à minha espera e que só depois dessa é que não há mais nenhuma. Tenho apenas esta vida para viver, e seria quase uma traição que eu faltasse à sua entrevista (…).
(O ROBOT) (…) mas a profunda fraternidade – tu o saberás, meu amigo – não é uma cadeia de braços, mas uma comunhão do silêncio, uma comunhão do sangue. (ON MOURRA SEUL) Toda a vida que se cumpre esgota a comunicabilidade onde quer que se anuncie. Assim, a hora da sua verdade não é uma hora de comício, mas de solidão final. A máscara que nos defende não tanto contra os outros como contra nós próprios (porque se nós a montamos não é tanto para que os outros nos identifiquem por ela, como para que nós acabemos de por ela nos identificarmos), essa mascara que é de comédia, ainda quando de tragédia, é bem vã nos instantes derradeiros de qualquer situação, porque então os olhos que nos vêem não nos vêem de fora mas de dentro. (…)
(REALIDADE IMEDIATA) Ah, a realidade imediata reconforta, nem que seja a realidade de uma pedra que nos atirem. Porque uma pedra é consistente, conhece-se, sem alarme, na dureza com que nos cria as próprias mãos, nos define, sem sombras, a cabeça que nos feriu, o sangue que nos inundou a face. (…)
II
(O DIVERTIMENTO) (…) só entendemos a morte quando a sabemos de cor, quando ela não significa já a aniquilação de uma vida como a nossa, mas é apenas as margens desta vida que a prolongam, o nada que nunca a pode aceder, a pode pôr em causa, quando ela é o contorno que não lhe altera a sua (a nossa) perenidade.
III
(VERDADE INDIFERENTE, VERDADE EXISTENCIAL) A verdade e o erro do que nos põe em causa o destino são o saldo indistinto de uma indistinta procura do nosso equilíbrio interior. A razões que o justificam são como a desculpa de quem é apanhado em flagrante: as suas raízes mergulham onde já não as sabemos. (…) Um problema de verdade-erro só é nosso quando o sangue o reconhece.
E no entanto – ou por isso, porque nos afectam a vida – são essas verdades estalão visível para aferi-las, as que mais profundamente nos afirmam ou mais radicalmente recusamos: tais verdades não se aferem por um estatuto, mas são antes a nossa própria carne, a tessitura do que somos, a indizível realidade do nosso ser – e nada há mais evidente que a nossa própria pessoa.
(CRISTO E A CONDIÇÃO HUMANA) Mas a voz escrava se não cala no homem, porque suporta a liberdade exige um esforço descomunal, superior às forças humanas (…)
(DESTRUIR, CONSTRUIR) (…) Destruir, negar. As mãos que desmantelam a ordem envelhecida são ainda a nossa própria vida, transmitem-nos a certeza de que há um mundo e nós no meio dele, identificam a inteira verdade do nosso corpo que age e é eficaz; e o rumor dos nossos gritos afoga as vozes obscuras e inoportunas, a nossa voz derradeira, ilude-nos a resposta à interrogação que nos espera, inventa-nos no NÃO essa ilusão de plenitude que nós buscamos no SIM.
(RECRIAÇÃO DO MUNDO) (…) que ninguém se espante do nosso espanto, nem que ninguém sonhe escravizar a nossa melancolia (…)
(DO MUNDO DOS DEUSES AO MUNDO HUMANO) (…) Que ninguém nos demonstre o nosso erro nem a nossa verdade: mais forte que toda a demonstração é a evidência feita carne e ossos e sangue e nervos, é esta plenitude sem margem de sermos. (…)
(VERDADE INTRANSMISSÍVEL) (...) que ninguém nos demonstre a nossa verdade ou erro (…) Como se a irredutível verdade da morte de alguém, que conhecemos, exigisse a coerência de uns olhos enxutos: mais forte que a certeza da inutilidade da dor é a absoluta presença da dor. Na ilha deserta, a aflição do abandono não reconduz o mundo que se perdeu: é o irremediável sinal de um recomeço, é o anúncio da vinda de todo o homem para recriar o mundo. (…)
(SAUDADE DE DEUS, SAUDADE DA INFÂNCIA) A saudade de Deus não é o sonho do seu regresso, como a saudade da infância não é um sonho de infantilismo: é a inexorável verificação da permanência de uma interrogação para a qual já não nos basta a resposta que nos deram. Sabemos hoje assim, meu amigo, que um Deus não é um ídolo sonhado a ouro e a incenso, diante do qual nos sintamos redimidos pela renúncia e esquecimento, é antes o espelho da interrogação original que nos veio no sangue. (PERMANÊNCIA DA INTERROGAÇÃO) O espelho quebrou-se, a interrogação ficou. (…) o sonho de ainda ver é mais forte do que a certeza de que os olhos são inúteis. (…)
(ILUSÃO E PLENITUDE) E depois, para muitos de nós, que vale a certeza de uma terra desabitada em face de uma ilusão de uma terra povoada de fantasmas? Se há uma vida a cumprir em unidade, se cada qual, dentro do seu mundo, é uma positividade sem margens – toda a vida está certa, para aquele que a vive, dentro da ilusão ou do erro.
IV
(OS LIMITES DA CONDIÇÃO HUMANA) (…) só depois da falência das nossas invenções nos descobrimos a nós, os inventores. (…)
(PROJECÇÃO DA VIDA NA MORTE) (…) Pobres palavras vãs: um «nada» imaginamo-lo sempre como algo que é… (…)
(O QUE HÁ A REDIMIR) (…) Colaborar com a vida, aceitar a validade de uma norma, forjar uma regra para a distribuição da nossa acção e interesse – sim. (REDENÇÃO DESDE AS RAÍZES) Mas é impossível, antes disso, desviarmos os nossos olhos da fascinação da vertigem, e vermos, vermos bem, de que fundas raízes gostaríamos de entender tudo quanto realizássemos. (…)
V
(REDENÇÃO E «FUGA») (…) Um acto de desespero é bifronte e enganador porque disfarça o peso daquilo que se evita com a própria dificuldade do acto com que se evita. A submissão aos «princípios», investidos de transcendência, são uma forma banal dessa fuga e desespero. (…)
(A INILUDÍVEL VERDADE) (…) não há já hoje para nós um testador da vida, mas apenas a própria vida, o seu milagre, num jogo da contingências…
(ARTE E EVIDÊNCIA) Assim a arte, meu amigo, não anula a nossa condição, mas precisamente esclarece-a, até à vertigem, diante do nosso desassossego. (…)
(REDENÇÃO PELA ARTE) A redenção de nós próprios não a procuramos em nada separado de nós, mas na vivência profunda dos nossos inexoráveis limites. (…)
VI
(O ABSOLUTO DA ARTE) DECERTO dirás que é pouco e que este sonho de absoluto é um mísero arremendo do outro ou dos outros que se perderam, é um pobre absoluto de segunda ordem… porque negá-lo? Mas que sabemos nós daquilo que não somos? Quem nos define a vida e a pessoa que não somos? (…)
(EMOTIVIDADE E VERDADE) Porque é dentro da emotividade que o mundo tem sentido, e a verdade humana, e a orientação fundamental de tudo o que nos orienta. (…)
I
Meu amigo:
(DO TEMPO E DO LUGAR) ESCREVO-TE para daqui a um século, cinco séculos, para daqui a mil anos… É quase certo que esta carta não te chegue às mãos ou que, chegando, a não lerás. Pouco importa. Escrevo pelo prazer de comunicar. (...)
(O ENCONTRO ORIGINAL) Mas a vida está cheia do seu dom original e só espera de nós um pouco de atenção: um pouco de humildade, de uma intima nudez. (…) Também tenho a minha parte de robot e não a nego. Mas sei que há outra coisa à minha espera e que só depois dessa é que não há mais nenhuma. Tenho apenas esta vida para viver, e seria quase uma traição que eu faltasse à sua entrevista (…).
(O ROBOT) (…) mas a profunda fraternidade – tu o saberás, meu amigo – não é uma cadeia de braços, mas uma comunhão do silêncio, uma comunhão do sangue. (ON MOURRA SEUL) Toda a vida que se cumpre esgota a comunicabilidade onde quer que se anuncie. Assim, a hora da sua verdade não é uma hora de comício, mas de solidão final. A máscara que nos defende não tanto contra os outros como contra nós próprios (porque se nós a montamos não é tanto para que os outros nos identifiquem por ela, como para que nós acabemos de por ela nos identificarmos), essa mascara que é de comédia, ainda quando de tragédia, é bem vã nos instantes derradeiros de qualquer situação, porque então os olhos que nos vêem não nos vêem de fora mas de dentro. (…)
(REALIDADE IMEDIATA) Ah, a realidade imediata reconforta, nem que seja a realidade de uma pedra que nos atirem. Porque uma pedra é consistente, conhece-se, sem alarme, na dureza com que nos cria as próprias mãos, nos define, sem sombras, a cabeça que nos feriu, o sangue que nos inundou a face. (…)
II
(O DIVERTIMENTO) (…) só entendemos a morte quando a sabemos de cor, quando ela não significa já a aniquilação de uma vida como a nossa, mas é apenas as margens desta vida que a prolongam, o nada que nunca a pode aceder, a pode pôr em causa, quando ela é o contorno que não lhe altera a sua (a nossa) perenidade.
III
(VERDADE INDIFERENTE, VERDADE EXISTENCIAL) A verdade e o erro do que nos põe em causa o destino são o saldo indistinto de uma indistinta procura do nosso equilíbrio interior. A razões que o justificam são como a desculpa de quem é apanhado em flagrante: as suas raízes mergulham onde já não as sabemos. (…) Um problema de verdade-erro só é nosso quando o sangue o reconhece.
E no entanto – ou por isso, porque nos afectam a vida – são essas verdades estalão visível para aferi-las, as que mais profundamente nos afirmam ou mais radicalmente recusamos: tais verdades não se aferem por um estatuto, mas são antes a nossa própria carne, a tessitura do que somos, a indizível realidade do nosso ser – e nada há mais evidente que a nossa própria pessoa.
(CRISTO E A CONDIÇÃO HUMANA) Mas a voz escrava se não cala no homem, porque suporta a liberdade exige um esforço descomunal, superior às forças humanas (…)
(DESTRUIR, CONSTRUIR) (…) Destruir, negar. As mãos que desmantelam a ordem envelhecida são ainda a nossa própria vida, transmitem-nos a certeza de que há um mundo e nós no meio dele, identificam a inteira verdade do nosso corpo que age e é eficaz; e o rumor dos nossos gritos afoga as vozes obscuras e inoportunas, a nossa voz derradeira, ilude-nos a resposta à interrogação que nos espera, inventa-nos no NÃO essa ilusão de plenitude que nós buscamos no SIM.
(RECRIAÇÃO DO MUNDO) (…) que ninguém se espante do nosso espanto, nem que ninguém sonhe escravizar a nossa melancolia (…)
(DO MUNDO DOS DEUSES AO MUNDO HUMANO) (…) Que ninguém nos demonstre o nosso erro nem a nossa verdade: mais forte que toda a demonstração é a evidência feita carne e ossos e sangue e nervos, é esta plenitude sem margem de sermos. (…)
(VERDADE INTRANSMISSÍVEL) (...) que ninguém nos demonstre a nossa verdade ou erro (…) Como se a irredutível verdade da morte de alguém, que conhecemos, exigisse a coerência de uns olhos enxutos: mais forte que a certeza da inutilidade da dor é a absoluta presença da dor. Na ilha deserta, a aflição do abandono não reconduz o mundo que se perdeu: é o irremediável sinal de um recomeço, é o anúncio da vinda de todo o homem para recriar o mundo. (…)
(SAUDADE DE DEUS, SAUDADE DA INFÂNCIA) A saudade de Deus não é o sonho do seu regresso, como a saudade da infância não é um sonho de infantilismo: é a inexorável verificação da permanência de uma interrogação para a qual já não nos basta a resposta que nos deram. Sabemos hoje assim, meu amigo, que um Deus não é um ídolo sonhado a ouro e a incenso, diante do qual nos sintamos redimidos pela renúncia e esquecimento, é antes o espelho da interrogação original que nos veio no sangue. (PERMANÊNCIA DA INTERROGAÇÃO) O espelho quebrou-se, a interrogação ficou. (…) o sonho de ainda ver é mais forte do que a certeza de que os olhos são inúteis. (…)
(ILUSÃO E PLENITUDE) E depois, para muitos de nós, que vale a certeza de uma terra desabitada em face de uma ilusão de uma terra povoada de fantasmas? Se há uma vida a cumprir em unidade, se cada qual, dentro do seu mundo, é uma positividade sem margens – toda a vida está certa, para aquele que a vive, dentro da ilusão ou do erro.
IV
(OS LIMITES DA CONDIÇÃO HUMANA) (…) só depois da falência das nossas invenções nos descobrimos a nós, os inventores. (…)
(PROJECÇÃO DA VIDA NA MORTE) (…) Pobres palavras vãs: um «nada» imaginamo-lo sempre como algo que é… (…)
(O QUE HÁ A REDIMIR) (…) Colaborar com a vida, aceitar a validade de uma norma, forjar uma regra para a distribuição da nossa acção e interesse – sim. (REDENÇÃO DESDE AS RAÍZES) Mas é impossível, antes disso, desviarmos os nossos olhos da fascinação da vertigem, e vermos, vermos bem, de que fundas raízes gostaríamos de entender tudo quanto realizássemos. (…)
V
(REDENÇÃO E «FUGA») (…) Um acto de desespero é bifronte e enganador porque disfarça o peso daquilo que se evita com a própria dificuldade do acto com que se evita. A submissão aos «princípios», investidos de transcendência, são uma forma banal dessa fuga e desespero. (…)
(A INILUDÍVEL VERDADE) (…) não há já hoje para nós um testador da vida, mas apenas a própria vida, o seu milagre, num jogo da contingências…
(ARTE E EVIDÊNCIA) Assim a arte, meu amigo, não anula a nossa condição, mas precisamente esclarece-a, até à vertigem, diante do nosso desassossego. (…)
(REDENÇÃO PELA ARTE) A redenção de nós próprios não a procuramos em nada separado de nós, mas na vivência profunda dos nossos inexoráveis limites. (…)
VI
(O ABSOLUTO DA ARTE) DECERTO dirás que é pouco e que este sonho de absoluto é um mísero arremendo do outro ou dos outros que se perderam, é um pobre absoluto de segunda ordem… porque negá-lo? Mas que sabemos nós daquilo que não somos? Quem nos define a vida e a pessoa que não somos? (…)
(EMOTIVIDADE E VERDADE) Porque é dentro da emotividade que o mundo tem sentido, e a verdade humana, e a orientação fundamental de tudo o que nos orienta. (…)
Saúde, amigo.
Vergílio Ferreira
Évora, Dezembro de 1957»
Vergílio Ferreira
Évora, Dezembro de 1957»
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