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A cabana de Thoreau

Por Luís Januário, publicado em 21 Dez 2011 - IONLINE

A calamidade que nos atingiu não é nenhuma doença infecciosa, embora se espalhe como uma praga. É efeito do sistema económico que os seres humanos construíram.


O Rui licenciou-se em Filosofia e cinco anos depois obteve o grau de mestre em Filosofia Contemporânea. Há mais de 15 anos que é professor profissionalizado no ensino secundário e, depois de um doutoramento em Semiótica Social, numa universidade, foi formador de professores e de outros profissionais, editor de mais de 300 livros, co-autor de manuais escolares premiados. Publicou vários ensaios filosóficos e contos de literatura infantil. Foi investigador de um centro universitário e bolseiro da FCT. “Hoje”, escreveram-me, “o Rui foi dispensado. As novas regras exigem cortes de pessoal. Os alunos fizeram um abaixo-assinado – mesmo os que não tiveram boas notas – a dizer que ele é um excelente professor.”

A Rita é psicóloga. Fez alguns estágios não remunerados e depois assinou um contrato com uma empresa farmacêutica. É competente, discreta, elegante e escrupulosa no cumprimento dos seus deveres, como diria a informação curricular de um patrão justo. Há um mês ganhou um prémio por ter ultrapassado as metas de produção. A semana passada foi chamada de urgência à direção. “A alteração das condições de mercado em Portugal” exigia o despedimento de alguns trabalhadores. Como ela.

Como chegámos aqui? Da mesma forma que se pergunta quando nos informam de uma doença grave. Como se deixou chegar àquele estado? Há quanto tempo sangrava? Ninguém lhe palpava as mamas? Não se assustou com a tosse?

A calamidade que nos atingiu não é nenhuma doença infecciosa, embora se espalhe como uma praga. Não é um terramoto, nem um maremoto, a queda de um meteoro, o aquecimento brusco. É um efeito do sistema económico que os seres humanos construíram, embora o seu controlo pareça fugir-lhes das mãos. A história das civilizações que soçobraram ensina que não lhes bastou diagnosticar o mal. Enquanto houver beneficiários continuarão a cortar as árvores para erguer manipansos, como fizeram os homens da ilha da Páscoa até ao último tronco. O combate à iniquidade do sistema económico exige serenidade, firmeza e solidariedade.

Firmeza para isolar os responsáveis. Os responsáveis são os que definem a estratégia económica suicida e os que a executam. País de criptofascistas há 50 anos, esta pátria tem o material desses anos de ditadura parola: os bufos, os medrosos, os amorfos e os executantes solícitos. Dos bufos não falarei. Espécie abjeta que segreda a ouvidos mais abjetos ainda. Os amorfos são os que pensam que a desgraça só acontece aos outros: aos judeus, aos pretos, aos comunistas e aos pecadores. E vestem-se de virtude, empoam a face para não serem confundidos com essa gente que, talvez, quem sabe, “mereça a sorte que tem”, 750 celas novas numa frase inspirada da “nova ministra da Justiça”. Os medrosos são dignos de piedade. Perdem sem ter lutado e são o trunfo maior da iniquidade. Mas os zelosos cumpridores de leis e disposições legais são a pior destas subpopulações, na nomenklatura do tardocapitalismo. São os decisores dos níveis intermédios, sem ideologia nem partido, os que não despedem mas comunicam os despedimentos, não cortam mas aplicam os cortes, não proíbem mas mandam proibir, não contratam nem renovam os contratos, não concordam e até talvez discordem das medidas que aplicam.

Serenidade, para dar à racionalidade económica do tardocapitalismo uma resposta que só pode ser de uma outra ordem e de uma outra dimensão. Essa ordem tem de ser poética e antiprogressista. Tem de recuperar formas de pensamento pré-imperiais, em que o objectivo não seja o crescimento mas a sustentação, em que toda a publicidade seja considerada enganosa, em que o crescimento das empresas seja limitado e os políticos tenham de estudar filosofia antes e não depois de disputarem as eleições. As profissões mais consideradas sejam as que, nas palavras de Misha Gromov, tentam revelar os quatro mistérios do mundo. Uma ordem em que o maior crime seja a destruição da natureza e a interdição de matar ou de manter em cativeiro se aplique aos seres humanos e aos outros animais.

Finalmente a solidariedade. Baseada no individualismo e num utopismo pós-histórico. Chamemos-lhe já um paratopismo pós-histórico, porque nos chamarão utópicos os que nos querem conformar com a miserável realidade que preparam e por isso melhor será que nos antecipemos na designação. A nossa paratopia considerará as utopias históricas perigosas e construirá respostas limitadas e de mínima dimensão.

Se as respostas globais falharam, é preciso deixar ao tardocapitalismo a ilusão global. Ocupar-nos-emos dessas infinitas mínimas coisas, sem ambição total, deixando os governos, a sua corte e os seus beneficiários a falarem sozinhos num terreno queimado e cada vez mais rarefeito. Seremos monges e monjas e se for caso disso mendicantes, mas sobreviveremos ou hão-de sobreviver os nossos livros, as nossas cabanas, como a cabana de Walden, onde Thoreau pensou a desobediência civil, a nossa música, as esculturas de madeira talhadas como as figuras de Baselitz, com gorros onde se lê ZERO e relógios nos punhos assinalando a hora quase final em que escrevemos estas crónicas.

Médico
Escreve quinzenalmente à quarta-feira

"but I like surprises" :) [da série mais uma cabeça que vai fazer (muita) falta]


“[All religions] make the same mistake. They all take the only real faculty we have that distinguishes us from other primates, and from other animals—the faculty of reason, and the willingness to take any risk that reason demands of us—and they replace that with the idea that faith is a virtue. If I could change just one thing, it would be to dissociate the idea of faith from virtue—now and for good—and to expose it for what it is: a servile weakness, a refuge in cowardice, and a willingness to follow, with credulity, people who are in the highest degree unscrupulous.”


"I am not even an atheist so much as I am an antitheist; I not only maintain that all religions are versions of the same untruth, but I hold that the influence of churches and the effect of religious belief is positively harmful. Reviewing the false claims of religion, I do not wish, as some sentimental materialists affect to wish, that they were true. I do not envy believers their faith. I am relieved to think that the whole story is a sinister fairy tale; life would be miserable if what the faithful affirmed was actually the case."

Christopher Eric Hitchens

discurso sobejamente conhecido, copiado da caixa de comentários do arrastão
+
um "comentário" que me fez sorrir:

«Se existe e se é um arquitecto, ou estava com uma alcolémia do caralho naquela semana (a única) em que trabalhou, ou é uma criatura depravada, provavelmente tocador de harpa e pirómano, que quis construir um Coliseum. Turek é o estereótipo do republicano americano, um bocadinho mais inteligente e menos ridículo que Sara Pahlin, mas igualmente agressivo. Faz-me lembrar o pessoal da seita que costumava bater-me à porta e que me queria vender uma Bíbia...a deles, aquela que salvava mais branco, incitando-me a entrar na arca...deles, porque isto vai tudo pó gallheiro em 2012 e só se vão salvar os eleitos, os puros, ou seja...eles. Estes servos de um senhor que fez um filho à mulher de um carpinteiro, através de uma estranhíssima delegação do direito de pernada, são escravos (como muito bem lhes chamou Hitchens) obcecados pela ideia da pureza, ideia que como sabemos é politicamente perigosa, e muito chata em patologia clínica porque leva as pessoas a lavar as mãos de 5 em 5 minutos, e a fazer rectoscopias uma vez por mês. Durante todo o debate, Turek usou o argumento da pureza de deus versus a impureza dos seres humanos, esses criados que nunca estiveram  nem nunca virão a estar à altura do criador (…”the problem is not cristhianism; the problem are the cristhians").  Nada tenho contra o  sentimento religioso. Acho que cada um fuma aquilo que quiser, e fala com os deuses ou deusas que entender e que o atenderem. Mas não vejo onde possa estar a contradição - que a pergunta que veio da plateia insinua - em ser ateu e estar interessado no estudo destas matérias.»

prometo ser uma boa menina



dica: além do Natal, aproxima-se o meu aniversário, tudo junto, é capaz de dar, winkwink e tal


[Oriente] e [a lei do deix'andar]

Oriente
por Ana Cássia Rebelo

 Corro durante horas, quando a noite cai, as mulheres chinesas chegam para jogar a sorte no casino, há um pintor num primeiro andar, pingam as telas no parapeito, faço a subida do hospital, uma, duas, três vezes, já não me canso, levo a boca fechada, levo o corpo fechado, cosido, cozido, cruzo-me com enfermeiras que terminam o turno, lembro a minha mãe de farda posta, tantas nervurinhas, os sapatos de calfe brancos que lhe moiam os pés, o chapéu engomado sobre o cabelo penteado, o filho que lhe morreu e que todos esquecemos, ficou ela, sozinha, com essa lembrança. Subo as escadas do pavilhão em passo rápido, está o parque deserto, tanta melancolia e solidão na noite de Lisboa. Como é bonita a tristeza. Corro para cansar o corpo, para o adormecer. 



~ ~ ~
a lei do deix'andar
por Catarina

É preciso, digo eu, que uma pessoa se habitue a que isto seja assim, a que isto seja a paz, e que a paz seja afinal algo de muito diferente do que se previra. Que a paz não é um estado de graça prolongado, não senhor, mas antes uma dignidade perante toda a emoção, ou falta dela. Quero dizer: a paz de andar feliz por Lisboa, contemplativa, debaixo do milagre; e a paz de andar triste por Lisboa, sem texto, debaixo de milagre outro.

De uma forma mais prática: a paz da tensão pré-menstrual, a paz do mau humor depois da sesta curta, a paz dos transportes públicos sempre muito cheios, a paz das ruas sempre muito sujas. A paz do que não é certo, do que não corre bem, ou do que simplesmente nem chega a correr, a paz do que falha, do que se tenta, e do que não se tenta. A paz do que se conhece e do que está por conhecer.

É por aqui que ando, agora. Às vezes não interessa mudar, interessa aceitar. E aceitando, é deixar andar. Não me julgues.

in A Trama

oh... ding! dong! I didn't go to listen to your song! ding! dong! I'm a silly fan

«O concerto de Bonnie ‘Prince’ Billy, o segundo que vi dele, baseou-se excessivamente no repertório mais country, digamos, em geral as canções de que menos gosto e das quais menos me lembro. E também devem ter sido tocados vários temas de Wolfroy Goes to Town (2011), que ainda não ouvi, mas de que fixei uma canção fantástica, «New Whaling». No palco, Bonnie ‘Prince’ é uma mistura de mimo, pregador e boneco articulado, bigode redneck, uma certa rigidez acompanhada de caretas, braços esticados, pernas a balançar e um tique qualquer com as calças e os bolsos. Pouco comunicativo mas não antipático, foi mais formal do que no outro espectáculo que vi, em que estava com um acompanhamento mínimo, e se mostrou mais festivo e mais negro. As canções têm uma estrutura bizarra, com quase «recitativos» e aparentes devaneios, mas a banda (guitarra, contrabaixo, bateria, piano, backing vocals) portou-se à altura. Tivemos direito à grande canção moderna sobre a amizade, a comovente «I See a Darkness». E a «Another Day Full of Dread», esse apocalipse feliz: «and I say: nip! nap! it’s all a trap /bo! bis! and so was this / whoa! whoa! to haiti go, /and watch it all come down / ding! dong! a silly song / sure do say something’s wrong / smile awhile, forget the bile / and watch it all come down».» Pedro Mexia n'a lei seca

"Não sinto que tenha de pedir desculpa aos portugueses"

«A propósito da primeira página do Expresso de hoje, não posso deixar de explicar ao sr. primeiro-ministro:

Eu trabalho. Trabalho muito. Nem sempre com vontade, mas trabalho. Muito.
Eu não tenho outro remédio senão pagar os meus impostos, porque tenho o privilégio de trabalhar por conta de outrem. Sou paga com dinheiro do orçamento geral do estado. Mas não me sinto em dívida.
Eu pago as taxas e as contribuições. As que, mais uma vez, não tenho outro remédio senão pagar. Mas as outras também. A tempo. E não estrebucho.
Eu consumo. Faço mexer a economia.
Eu, sem contar com o corte no próximo subsídio de natal e sem pensar no que mais gasto quando consumo, ganho menos 150€ que no ano passado. Desde Janeiro. É só fazer as contas.
Eu gerei um nadinha menos que o 1,3 filhos da média portuguesa, portanto estou apenas ligeiramente abaixo da média.
Eu voto. Sempre. Mesmo quando dói.
Eu não votei, nem nunca votaria em si ou em pessoas que pensam a sociedade como o senhor pensa.
Eu já vai para uns 30 anos que não acredito que, se nos sentarmos sempre na cadeira em frente ao professor, apagarmos sempre o quadro e levarmos o livro dos sumários para a sala dos professores, passamos de ano de certezinha.

Portanto, não que me tivesse ocorrido a necessidade, mas, já que fala nisso, a mim sim, tem de pedir desculpa.»

por menina alice

olha a menina (n)da rádio!

Lembram-se deste convite para este evento?
Pois é...

Agora, o mestre-sala do programa "Quem és tu, Laura Santos?" convidou-me para o grandioso encerramento e eu, enfim, lisonjeada... aceitei o convite :)

Poderão ouvir-nos no próximo Domingo, entre as 22 e as 23h:
- através da telefonia em 107.9
- posteriormente através de podcast (para quem desejar, está aqui o arquivo).


'bora marcar nas agendas um serão a ouvir dois especialistas em sapiência Laura Santos? 'BORA!

sick & sick&tired

Revista MODO DE USAR & CO


A revista Modo de Usar & Co manifesta-se de duas maneiras: como revista impressa (Livraria Berinjela, Rio de Janeiro), dedica-se à poesia-escrita. Como revista eletrónica (blog), dedica-se à poesia sonora e visual, em vídeo, e também escrita. Editada por Angélica Freitas, Fabiano Calixto, Marília Garcia e Ricardo Domeneck. 
revistamododeusar@gmail.com

A questão que se coloca é:

após 1 ano de existência, ainda não conhecem o BUALA?!
(tsc tsc tsc)
eis um exemplo/motivo delicioso para se ler o BUALA:

How to Write About Africa*

 

* deixo link para o inglês pois a versão portuguesa ficou empobrecida

Certeza

por Ana Cássia Rebelo

«Não é que não goste de Portugal, mas nem a luz de Lisboa me encanta, nem a Amália me emociona, não gosto de pastéis de Belém, nem de desfiada de bacalhau, irritam-me os corações de filigrana e as santinhas flourescentes que se vendem nas lojas da Catarina Portas. Sinto desprendimento na despedida e indiferença no regresso. Gostar a sério, no sentido de pertença, de precisar de um lugar e das pessoas que nele habitam, gosto daquele bocadinho de país que vai de Santiago do Cacém até Sines e, na cidade, daquele outro pedaço de terra que se levanta em desordem e feiura e se estende pela Portela de Sacavém, Olivais e Moscavide. Lá diz o cantor: sou do mundo e sou da cama dos meus pais. Não fora o fardo do amor, educar, alimentar, promover o saudável convívio com a família materna e paterna, e teria fugido para o outro lado do mundo. Ia cuidar dos arrozais de Maina, beber kingfishers pelo crepúsculo, sentir no corpo a luz que atravessa as janelas de carepa, escutar o Rafael falar no alpendre da sua casa, no meio das jaqueiras com bócio.

Mas, mesmo não muito gostando muito de Portugal, mesmo não sentido cá dentro o amor pela pátria, me incomoda a quantidade de pontapés e murraças que se têm dado a este país. Cansa tanta irresponsabilidade, tanta pouca-vergonha. Olhando para trás, para o passado recente, é inevitável perguntar: foi preciso chegar a este ponto para tomar as decisões que há muito precisavam de ser tomadas? Durante todos estes anos, com sucessivos governos, ninguém notou que o país se afundava? Muita gente viu, muita gente soube, ninguém esteve para se chatear. Um - assim se demonstra o disparate da sua governação - criou um ministério para a igualdade cuja essencialidade se provou com a extinção assim que a titular da pasta se cansou da luta; outro, tão cobardolas, preferiu fugir para a comissão europeia, pondo a vaidade pessoal à frente do compromisso com os eleitores; o seguinte, valha-nos deus, não teve tempo para mostrar a sua incompetência; o último foi um caso patológico de megalomania e mitomania. Assim vamos andando.

Porém, pior do que as dúvidas em relação ao passado são as certezas em relação ao futuro. No meio de tudo isto, confusão, angústia, da revolta que tarda em chegar, chega-nos a certeza de que, assim que existir uma folgazinha, assim que sobrarem meia dúzia de tostões para gastar, assim que se deixar de sentir o controlo de quem nos empresta dinheiro, voltará tudo ao mesmo. Ainda muitas rotundas se hão-de construir em Portugal.»

Ana de Amsterdam

«o monstro»

texto surripiado à Catarina d'A Trama

Habituei-me a escrever sobre mim. Nunca menti, mas ficcionei, sempre. Agora que dei de caras com aquilo que sou fiquei sem nada para dizer. A realidade é sempre mais pobrezinha, menos interessante que a ficção. Curiosamente, foi a ausência de mim naquilo que me fazia ser eu que me fez chegar a mim. Ou a outra possibilidade de um mim que, nos últimos anos, se vinha a esgotar, depressa. No Lobo da Estepe fala-se disto, de alguma forma, nestes eus que cada um contém, da impossibilidade de se chegar a uma forma final, uma resposta definitiva. E eu sempre vivi nessa busca de uma qualquer unidade que, tchanam, não existe. Não sabia, pronto, não sabia. Estava mesmo convencida de que, através da leitura, do conhecimento, do diálogo e da reflexão, poderia um dia fechar o círculo e dizer: é assim que as coisas são. Ou: é assim que eu sou. Afinal, a leitura traz esclarecimento, mas não traz unidade. O conhecimento ajuda a que a leitura possa ter consequências mais profundas mas não garante grandes mudanças naquilo a que, numa distinção curiosa, chamamos de vida. O diálogo, no meu caso particular, nunca trouxe grande coisa - já que quase sempre significou confronto ou, pelo contrário, consolo, uma coisa mais pequenina, mais primária, da chapada ao beijo na boca. E a reflexão? Mas quem é que não reflecte? E depois?

Já tentei escrever sobre outras coisas. Já tentei poemas, romances, contos. Já tentei escrever sobre mim fingindo que não estava a escrever sobre mim. Já tentei escrever sobre outros e acabei por descobrir que continuava a escrever sobre mim. Também já tentei não escrever. Este texto é justamente essa última tentativa, a de não escrever.

Já fui mais livre do que neste Domingo que agora, com que alívio, vai fechando as portas. Fui mais livre enquanto lia o Séneca e via o meu filho descer o escorrega, fui mais livre quando me pus a acreditar em Deus e Lhe pedi, como a Etty, que me ajudasse a ajudá-Lo. De tempos a tempos preciso de apertar os ombros, de apalpar as pernas, certificar-me que ainda está tudo aqui, como o deixei. Evito olhar-me ao espelho - porque nunca fui tão feia como hoje. Há um conforto imenso na falta de beleza, no desmazelo, nos óculos demasiado grandes, no cabelo demasiado curto. Mas não se pode olhar muitas vezes. Eu sei, eu sei que nunca fui tão feia como hoje, e sirvo-me disso para me chegar aos outros, um bocadinho mais leve de mim, mais ausente. A vida toda foi este exercício hercúleo de me fazer bela para o outro, um outro do tamanho do mundo, que deveria justificar a minha existência. Deu-me sempre tanto trabalho, o exercício de uma beleza tosca, insegura, assente na mentira da minha força. Porque eu sou, dizem, uma pessoa forte. Reparem, o mais engraçado é que, por mais luz, ou por maiores trevas em que esteja, caio facilmente nesse velho vício de me mostrar especial. Aconteceu há pouco tempo, lembro-me, que um estranho acabou a falar-me de mim, conhecendo-me. Era eu, distraída, a mostrar o que não tenho, o que nunca tive, o que se desmontou sempre à menor das convivências.

É isto que espero, afinal: ser amada pelo que não tenho, pelo que não sou. E de dia para dia é só no amor, no amor pela beleza que me falta, que deposito alguma esperança. Quero dizer: apago-me para que, com sorte, e alguma atenção, me possam ver.

ha!

via Oneironomicon


já disse que o melhor lugar do mundo é a minha cama?

e se tivesse desta roupa de cama era capaz de ser um bocado mais difícil sair de lá

made in Tires

silêncio esforçado

Tudo isto poderia ser escrito a azul sobre branco, daquele azul do meu vestido, o vestido que toda a gente que me conhece sabe qual é, portanto sabe de que azul falo. É aquele que acompanha a minha degradação. Um dia, um de vós dirá de mim aos outros, após reencontrar-me na rua: “her famous blue dress was torn at the shoulder”; seguir-se-á um silêncio curto.
Não escrevo a azul sobre branco porque não me apetece ser fácil, se é que me apeteça ter a ingenuidade de que controlo seja o que for. O tom com que escrevo, esse impus-mo quando me lembrei de levar o CD do L.Cohen para o carro, essa taciturnidade.
E tudo num profundo silêncio.
Não falo vai fazer cerca de 2 semanas, se quisera ser exacta (se-lo-ei, então) direi que não falo há (pausa para fazer contas) (um post-it): 10 dias e cerca de 18 horas. Sou afortunada pois, neste tempo, ninguém me pediu que fale. Enfim, se mo exigissem não sei que se seguiria, um tranquilo momento de afonia ou, pior, de tanto puxar pela goela talvez se rasgasse o meu vestido. Confesso que me custaria ver rasgado o vestido.
fotografia de Forced Labor (blue sand), Liliana Porter

by Available Light

"Nudes by Available Light" by Wil Blanche

*diz que* escrevem com fúria


pssst: clicar na imagem ;)

autores

Penso que um dos principais objectivos da grande literatura – daquela que faz ferida – é desmascarar e lutar contra a hipocrisia. A questão é saber o que se entende por grande literatura. Orwell? Bukowski? Miller (Henry, not Arthur)? Sem qualquer dúvida: Céline. Ele é, por excelência, o grande desconstrutor da hipocrisia humana. Basta ler Viagem ao Fim da Noite. Mas não podemos esquecer Morte a Crédito, e, também, os relatos de Castelos Perigosos e Norte. Céline combateu sempre a hipocrisia. Até a sua (que, a bem da verdade, tinha uma boa dose dela). É claro que as simpatias nazis não o favorecem. Não fica muito bem na fotografia – como é costume dizer. Mas quem disse que ele queria ficar bem na fotografia? Para mim existem dois tipos de autores. Melhor: três. Os que querem ficar bem na fotografia; os que não se importam de ficar mal na fotografia; os que abdicam da fotografia. São estes dois últimos que me interessam, inspiram. O problema está em admirá-los e, ao mesmo tempo, querer ficar bem na fotografia.

por manuel a. domingos in meia-noite todo o dia

A VIDA QUE NÃO VIVI

Quando, à minha volta, as pessoas se envolvem em discussões mais ou menos inflamadas sobre quem é quem, quem foi o quê, lembro-me sempre de Jesus Cristo na cruz e de Lenine na tumba. Mortos, nada mais que mortos, vamos todos tentando justificar a vida com altercações inconsequentes. Daqui a nada estamos enterrados. E depois ninguém poderá queixar-se da vida que não viveu.

por Henrique n'Antologia do Esquecimento

para que nela possamos caber

«Encaro hoje a memória como uma massa muscular que é possível trabalhar num sentido ou noutro. Que músculos do braço pretendemos desenvolver? E como? Existem uma série de diferentes exercícios que podem ser executados para valorizar este ou aquele. Agimos dessa forma com a memória, quase sempre inconscientemente, porque precisamos de nos adaptar aos discursos de época, para que nela possamos caber.
(...)
Tal como os músculos, a memória pode igualmente atrofiar e perder capacidades, por falta de uso. Acredito que a maior parte das pessoas que fixa uma história pessoal inalterável, a qual repete ao longo dos anos com a mesmíssima semântica, acredita piamente no que relata. Mas todas as construções da memória são valiosas e merecem ser ouvidas. Não há uma memória melhor do que outra. Há é memórias que podem provar-se, e outras que não.»

Isabela Figueiredo in Das castas entre os retornados

+

«Os nossos cérebros são bons a registar datas e factos que podem ser esquecidos quando já não são necessários. Mas nada do que é bem guardado nos nossos corações alguma vez se perderá.»

surripiado ao Rui Bebiano n'A Terceira Noite 

a tentar regressar :)

ainda assim, sorrimos

Espero que me venhas buscar para almoçarmos todos juntos, uma raridade nos dias inúteis. Faço planos e sorrisos, este é o final do ano para gente como nós, working 9 to 5 (quem dera que assim fosse), what a weird way to make our living. E amo-te tanto.
E amo tanto tudo isto de que somos feitos e o que fazemos neste corta-mato, jogo de estafetas, contra o que nos coloca amiúde no medo do medo, nos tenta minar, mas não, nós não. É que: ainda assim, sorrimos. Gostamos disto.


O que tenho por certo sobre nós: gostamos de gostar.

contagem decrescente :)

uma família que-eu-cá-sei, daqui a uns dias...
foto dali

quando ler nos deixa "bem ca puta da vida"

isto tudo surripiado ao


Nem sempre a lápis (195)

Terminava assim:
29
«Gostava que este livro, se vier a ser um livro, soubesse a pão e a sal, a peixe frito e a harira, a água fresca e a chá, que as páginas ofuscassem como a prata do mar de Asilah e os dias luminosos do Rif, cegassem como os campos do baixo, em Agosto, e acendessem trilhos no mar como a Lua Cheia na Fortaleza; fossem impressas a buril nas encostas xistosas das Laceiras e apagadas pelos cascos do gado afugentado por um velho Land-Rover; falassem várias línguas comuns, sem idade nem sotaques, apátridas e abrangentes, que nelas se ouvissem várias vozes numa só voz e ribombassem as trovoadas secas de Maio e de Setembro e os relâmpagos iluminassem as páginas de um rosto apresentado como figura tutelar e exemplar, sem exigências nem cedências recíprocas; fossem rasgadas pelo estertor primário da matança de um porco numa aldeia de Mortágua, pela sinfonia da água a correr de um bica de metal para uma pia de granito, em Salgueirais, pelo silêncio frio da serra do Caramulo e pelo silêncio calcinado dos cerros algarvios; fossem interrompidas pelo canto das popas e abelharucos, riscadas pelo voo rápido das andorinhas, mas sustentando bem alto um predador atento ao mínimo movimento da presa que se protege da canícula; gostava que nelas fumegassem fogareiros de barro e lareiras de sobro e de giesta, cheirassem a forragem cegada e a tagine, a chuva e a cães molhados regressados da caça, a pomares devassados pelas abelhas e a vinhas vindimadas, como cheira o teu cabelo quando sais do mar.
Gostava que este livro, se tiver de ser um livro, ao folheá-lo sentisse o toque da tua pele e ouvisse a tua respiração enquanto dormes; permanecesse secreto e inacabado, escrito e reescrito como o livro que me recuso a escrever, onde não houvesse lugar para lugares-comuns e, à falta de melhor, o silêncio se impusesse à previsível conclusão de cada período; fosse um palimpsesto onde latejam outras páginas, em branco e decifráveis, sobrepostas como sucessivas camadas de cal dos montes do Sul, como escamas de ardósia dos derradeiros telhados da Beira, comunicativas e arejadas como açoteias de Tânger e de Asilah; memória amnésica, fronteira de fronteiras derrubadas.»
30
(de Setembro)
Já arrumei a mochila e atestei o Land-Rover. Esta madrugada arranco até Jajouka.
[até Jajouka, Monte Alto / Mortágua, Maio / Setembro de 2006]

uma falha

tenho falhado em deixar-vos aqui o link do blog-revelação-dos-últimos-tempos:

tem livros, obviamente
é fútil, comme il faut


tem conselhos à medida do freguês

tem fregueses decididos:

Freguesa coloca Kama Sutra sobre o balcão.
Livreira Anarquista: Quer que faça embrulho?
Freguesa: Não, é para usar já.

How To Help

clicar para ajudar

"We will punish the guilty. 
The punishment will be more generosity, more tolerance, more democracy."

Mayor of Oslo, Fabian Stang

extraordinário!

me too :)

via http://www.postsecret.com/