sandra aka margarete ~ acknowledgeyourself@gmail.com

repara no azul

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(Repara, é para criticar se assim houver vontade.) O que me interessa é o azul. Apenas o azul. Posso afiançar que este azul passou directamente para aqui sem delongas. Sem ofensa. Sem ofensa ao tratamento e adequação, sem ofensa à focagem, sem ofensa ao enquadramento. É isto. Tudo muito básico.


O porque.

Porque o coração se acede gravemente através do esófago, se quiseres, se precisares. O coração não tem de ser o coração, o esófago será sempre o esófago. Porque o esófago eructa. Porque o esófago, ali, à beira da traqueia, leva muito mais do que a ignorância possa imaginar. Porque não quis complicar a situação considerando a faringe ou, pior, considerando a praga maior - a laringe. Mais uma vulgar tarefa de fazer das tripas coração, sem ânimo: arrancar tudo do esófago sem por isso asfixiar (repara, estou a negligenciar o teu ar); arrancar tudo do esófago sem por isso engasgar.

indiscriminadamente

Empregarei as palavras sangue, coração, peito, lábios e cidade indiscriminadamente. Ponto 1. Não li poesia em qual(nt)idades que me permitissem alhear palavras óbvias e pobres. Ponto 2. Não atinjo instrução a um nível que me permita automatizar críticas altas. Ponto 3. O meu ouvido tolera apenas dois tipos de música: topo de gama ou qualquer tipo de música desde que me leve a lugares autobiográficos. Posto isto e considerando a minha preguiça empregarei as palavras sangue, coração, peito, lábios e cidade indiscriminadamente.





-- lábios --------- coração indiscriminadamente. (----- sangue)

-------- cidade -------peito -- lábios-- -- --- coração - sangue indiscriminadamente.





adenda não empregarei palavras indiscriminadamente.

coração via esófago

Estas são as três actividades que se seguem (por ordem) escrever, fumar, almoçar, fumar (quatro). Acabo de encomendar "entre o vivo, o não-vivo e o morto" (por falar nisso, não me posso esquecer de ir aos correios - HOJE, sem falta). Estou siderada com a capa do nº2. Repito até acertar “entre o vivo, o não-vivo e o morto”, tenho insistido no erro: “entre o vivo, o vivo e o não-morto”. O erro comum, cansativo. Tudo é cansativo. Hei-de acertar mas não sei como, falta-me perseverança. Nada é mais importante. Nada é mais importante que nada. Trivialidades e ignorâncias atropelam-me o pensamento cheio de esgana. Construo frases paralelas à minha agenda e fico impávida. Nada disto, digo.
Digo e procuro não repetir. Escoo todas as coisas que não vi e amontoo-as. (rimei, sem querer; não sei porque me justifico) (sei) Penso nas palavras e nas aulas de Linguística mas num instante vêm outras recordações desses dias. Distraio-me das aulas de Linguística e da localização do lugar* que eu ocupava naquela sala com vista para as árvores. Nos dias de sol eu pensava na improficuidade. Palavra estranha que faz jus ao seu significado. A fluência. E o ritmo?
Im pro fi cu i da de. Cansativo. Prefiro buscar outras situações: plataforma, limbo, fio. Apenas exemplos, é claro.
Certamente ando distraída. Contemplei a palavra MORTO excessivamente. Agora não me desembaraço de nada e sei que chega o fim. Preciso de fazer declarações. Lembro coisas pequenas: cortar o cabelo, mudar de casa, desempregar-me, despachar-me para alto mar, criar outro blog.
Nome disponível: coração via esófago.

* "localização do lugar" não soa bem mas algo me impele a criar esta regra, não posso "visualizar (visualização) o lugar" ou "recordar(recordação) o lugar" urge localizá-lo, ao lugar



magnólia [ Porto I 2006 I contigo I para ti ]

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para ti, neste sítio (d)onde falo os meses encapuçados disparo para os antípodas eternamente para ti na nossa infância na nossa puberdade tão longas as nossas rugas ai um abraço de pele

Hoje não leio mais



É sempre assim, volto atrás.
Penso-me já preparada para recolher e regresso.

À hora de almoço roguei uma praga, disse-me para dentro: se alguém pedir licença para sentar a meu lado, vai ouvir as verdades.
Assim aconteceu. Não que seja vulgar alguém sentar-se a meu lado, mas não, não é comum. Não fora eu tão distraída entre o início e o final do almoço no refeitório e poderia pensar ser non grata. Adiante.
Aconteceu então alguém pedir licença e aconteceu eu não a recusar. A início hesitei dizer-lhe as verdades, hoje calhou-me uma colega das que gosto. Para não perder coragem disse de rajada “não está certo, eu não deveria estar aqui”. Não está certo. A colega, indulgente, acenou e ainda acrescentou que sabe. Pasmei do desplante. Não perdi tempo a falar-lhe dos socos nem disse “isto não deveria ter sido assim” nem rematei com a questão “quem se julgou no direito?”. Tudo inútil. Acabei o almoço sem comer a fruta (laranja) que coloquei no saquinho de papel dos talheres e trouxe no bolso. Fiz com que o resto da tarde corresse. Despeguei e fui para a paragem. Apanhei um autocarro de número diferente do habitual, o que significa que fiz um percurso diferente do habitual. (para quem não saiba)
Nunca leio nos transportes, nunca leio na rua. Observo. Paro, não leio. Saquei o livro após pedir licença para me sentar ao lado daquela senhora. Li isto no autocarro:


Era mais forte e venceu.
«Sabes, meu rapaz, os fortes
ganham, vencem, ficam
com mais», sabes, ontem
pôs-se o sol, ambos-os-dois

ficámos a tentar que corresse
bem o sexo útil. Pode ser
aqui ou nas selvas, junto
do mar, nada tens que recear.
Não é sempre novo o corpo

que te toca e, se pesado
e distante, ama-se a ele tanto
como se próximo e leve.
A alma? Fica na serra,
que vá o corpo atrás dela.

Tiro da erva o sabor,
plantada no meu jardim
e trato bem dos meus cães
qual criador de cães. O amor?
Está sempre em guerra.


Helder Moura Pereira in amor carnalis
ed frenesi, 1998

Encerrei o livro que não arrumei, segurei-o com suor. Estava calor. Não li, no transporte, na rua, observei, parei, mas não li mais.

Repito três vezes: Hoje não leio mais; Hoje não leio mais; Hoje não leio mais («Sei muito bem, disse ele, que me não podes auxiliar em nada, mas abro-me contigo porque para os falhados e inúteis da minha espécie, a salvação está em desabafar. Sou obrigado a procurar uma explicação e uma justificação da minha vida absurda, nas teorias de outrem, num tipo literário, na ideia de que nós (...) degeneramos...») [Tchékhov (Duelo), Miss Allen n'O regabofe].

Recolho(me).


(título secreto)










sobre obras que inevitavelmente nos deixam uma interrogação


nunca é demais lembrar...

que o melhor sushi bar do país é em Braga!

http://www.realestate-chocolate.com/wp-content/uploads/2008/03/sushi.jpg

a propósito do comentário recebido hoje :)


hocho
sushi bar

Rua do Forno, nº17 - 4700-428 Braga Sé

telef. 253040346

(assalto a Elsinore)

Uma constitucional perturbação da vontade e uma ânsia, paralelamente paralisante, de sobre tudo dizer tudo, sem falha, falta ou fraqueza, fazem com que eu ponha em tudo o que faço uma demora que acaba por me apavorar até à acção, e que comece essa acção por um pedido de desculpas de tanto ter demorada.


Excerto de carta de Fernando Pessoa a Jaime Cortesão,
in "Obra essencial de Fernando Pessoa, Cartas"


surripiado à Carla de Elsinore

estrada secundária

poemas do dia ~ 1 ~ 2

:)

detail

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agora a alex é só via twitter isto... via twitter aquilo

tenho 3 coisas a dizer-te:

#1 também quero... Embarassed
#2 manda o link ao Manel e à lebre, para o coisas do arco da velha Ciclope
#3 lá fora levas, mancha humana! Peixeira


venho, por este meio, solicitar um esclarecimento

recebi n convites facebook este fim de semana, alguns convites surgem de pessoas cujos nomes não reconheço, outros surgem de pessoas que eu nem sabia que possuíam o meu outro e-mail... pergunta: esses convites são resultado de um qualquer mecanismo automático do tal facebook* ou... são convites verdadeiros, feitos por decisão/vontade da pessoa?

obrigada!


* não, nem facebook, nem twitter, nem outras coisas que, de momento, basta-me o e-mail para me distrair

sombras de ontem

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o Choupal é nosso

Foi bonito. Cheguei cerca das 10h15m… estavam por lá meia dúzia de esperançosos “será que vai aparecer gente?”.
Apareceu, sim.
Perdi o conto às voltas que dei ao cordão. Houve muito sol e calor. Houve gosto em estar ali. Numa cidade tão povoada as ausências pesam sempre, mas afianço que as presenças foram bestiais. Gente bem disposta a lutar pelo metro quadrado que nos resta. Que, repare-se já tem uma bela dose de betão e aço! Não sei pôr forma num texto sobre tudo o que vi hoje no Choupal que é nosso e que queremos manter como tal.
Algumas fotografias têm legendas (têm de passar por cima da fotografia). Tive a sorte de estar presente no momento em que as duas extremidades do cordão se uniram :)



a p&b

sobre o meu Choupal

update (Remetendo-vos para duas pessoas que leio religiosamente…)

Ali, a Luís Januário, hoje a Osvaldo Manuel Silvestre.

Destaco o que me levou a fazer minhas as palavras do Luís: «quando Osvaldo lhe perguntou a opinião sobre a produção poética contemporânea e ele disse que todas as décadas surgiam um ou dois poetas (…). Mas nas últimas décadas (pausa enfática) não vislumbrava ninguém.».
No seu post, Osvaldo Manuel Silvestre refere que Nuno Júdice não disse que «não vislumbrava ninguém» porém foi o que eu ouvi. Tenho o momento presente, a questão não é simples e foi inclusive antecedida por uma "justificação" sobre a "natureza ética" da mesma. Lembro-me de, ao momento da resposta de Nuno Júdice, ter pensado estranha e instantaneamente “que pena não ter preferido evocar ignorância ao invés de dizer que não vislumbra ninguém”.
Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde
, pois claro. Não venho aqui em socorro de verdades inadiáveis, mas porque de facto também eu estranhei esse momento da sessão.
Por fim e apenas por acaso (ou talvez não), também ouvi “Depois de mim só a prosa” e até lhe achei certa graça.
Adiante.

Resta-me deixar o meu agradecimento aos autores e dinamizadores d’Os Livros Ardem Mal pelas sessões lufada-de-ar-fresco com que nos têm presenteado. Dia 02 de Março lá estaremos de novo…

(poema do dia)

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(imagino-a cheia de livros)

Easy to MoveFrom EntranceBedroom

[ rascunho do que gostaria de (d)escrever ]

Sei que, por estes dias, ainda me falta ler Camões com atenção. Sei disso. Ando sempre de volta do saber. Ando sempre de volta das secreções. (É tão natural quanto eu e os cadáveres. Natural.) As minhas (secreções) são tácitas, existem mas não as vejo, não lhes sinto a mucosidade. As outras existem, vejo-as, sinto-as, pego-lhes com a mão direita, assim. Para que seja pontual, restam-me 13 minutos. Resta-me pouco tempo pelo que repito “um pouco de calma, alguma poesia”. Já sei qual é a minha missão para evitar desistir já. Não é fácil, e eu que sempre gostei do fácil... E eu que nunca fiz apanágio de me mostrar mestre de dificuldades... Para que fui inventar esta vida? Ando de roda das tabelas com nomes que transformei em números para ciência. Confundo tudo. Prevejo o mal da minha essência e atiro-me nos braços dos que me aturam. Deixo-me pensar o pior de mim e não sei aceitar.

Não deveríamos fazer isto uns aos outros. Depois, num instante tão rápido quanto um instante consegue ser, percebo tudo de novo. São cansativos estes abandonos, cada vez mais se torna delicado o retorno. Sinto as pálpebras vermelhas vivas. Sei o cabelo parco. As peles estão próximas das de uma mulher de avental preto e avantajado. Lembro a alegoria da peixeira e retorno. Se eu fora peixeira, desesperaria com a mesma intensidade à insatisfação que congemino dos meus clientes e colocaria em causa as motivações para me distinguirem * como sua fornecedora. É certo. Olha, estão aqui, assentes no chão, os meus pés. E a minha mão direita, com que limpo secreções. Ainda me restam 5 minutos. Declaro este texto “rascunho do que gostaria de (d)escrever”. Dedico-o ao c, à Truta e à Marta. Restam agora 4 minutos, já piquei o dedo.

Como aprender a estar morto, Italo Calvino

O senhor Palomar decide que, de agora em diante, fará como se estivesse morto, para ver como corre o mundo sem ele. Há já algum tempo que se apercebeu de que entre ele e o mundo as coisas já não correm como antigamente; se antes lhe parecia que esperavam ambos alguma coisa um do outro, ele e o mundo, agora já não se lembra do que havia de esperar, de mal ou de bem, nem porque é que este esperar o mantinha numa perpétua agitação ansiosa.
Portanto, agora, o senhor Palomar deveria experimentar uma sensação de alívio, não tendo que continuar a perguntar-se que coisa lhe prepara o mundo, e deveria igualmente sentir o alívio do mundo, o qual já não tem de se preocupar com ele. Mas é exactamente a expectativa de saborear esta calma que torna ansioso o senhor Palomar.
Em suma, estar morto é menos fácil do que perecer. Em primeiro lugar, não se deve confundir o estar morto com o não estar, condição que ocupa também a interminável extensão de tempo que antecede o nascimento, aparentemente simétrica da outra, igualmente ilimitada, que se segue à morte. De facto, antes de nascer fazemos parte das infinitas possibilidades às quais acontecerá, ou não acontecerá, realizarem-se, ao passo que, uma vez mortos, não podemos realizar-nos, nem no passado (ao qual pertencemos agora inteiramente mas sobre o qual já não podemos influir) nem no futuro que, apesar de influenciado por nós, nos permanece vedado. O caso do senhor Palomar é uma realidade mais simples, porquanto a sua capacidade de influir sobre alguma coisa ou sobre alguém foi sempre desprezível; o mundo pode muito bem passar sem ele e ele pode considerar-se morto com toda a tranquilidade, sem sequer alterar os seus hábitos. O problema é a modificação, não aquilo que ele faz, mas sim aquilo que ele é, e mais exactamente aquilo que ele é em relação ao mundo. Dantes, por mundo, ele entendia o mundo mais ele; agora, trata-se dele mais o mundo menos ele.
O mundo menos ele quererá dizer o fim da ansiedade? Um mundo no qual as coisas aconteçam independentemente da sua presença e das suas reacções, seguindo uma sua lei, ou necessidade, ou razão, que não lhe diz respeito? Bate a onda no escolho e escava a rocha, aparece uma outra onda, uma outra, ainda uma outra; quer ele esteja em acção quer não, tudo continua a acontecer. O alívio por estar morto deveria ser este: eliminada aquela mancha de inquietação que é a nossa presença, a única coisa que conta é o desenrolar e o suceder-se das coisas sob o sol, na sua serenidade impassível. Tudo é calma e tende para a calma, até mesmo os furacões, os terramotos, a erupção dos vulcões. Mas não era o mundo já assim quando ele lá estava? Quando cada tempestade trazia em si mesma a paz do depois preparava o momento em que todas as vagas se teriam abatido contra a costa e em que o vento teria esgotado a sua força? Talvez que o estar morto seja passar para o oceano das ondas que permanecem ondas para sempre, sendo portanto inútil esperar que o mar se acalme.
O olhar dos mortos é sempre um tanto ou quanto deprecatório. Lugares, situações, ocasiões são grosso modo aquelas que uma pessoa já conhecia e reconhecê-las traz sempre uma certa satisfação, mas ao mesmo tempo notam-se muitas variações, pequenas ou grandes, as quais, por si só, se poderiam aceitar, se correspondessem a um desenvolvimento lógico e coerente, mas que, muito pelo contrário, surgem como arbitrárias e irregulares, e isto incomoda, sobretudo porque uma pessoa é sempre tentada a intervir, para introduzir aquela correcção que lhe parece necessária, e não o pode fazer porque está morta. Donde uma atitude de relutância, quase de embaraço, mas ao mesmo tempo de suficiência, como a de alguém que sabe que o que conta é a sua própria experiência passada e que a tudo o mais não vale a pena atribuir demasiado peso. Um sentimento dominante não tarda a apresentar-se em seguida, impondo-se sobre todo e qualquer pensamento: é o alívio por se saber que todos os problemas são problemas dos outros, que é tudo lá com eles. Aos mortos já não deveria interessar mais nada de nada, porque já não lhes diz respeito pensar em nada disso; e mesmo que isso possa parecer imoral, é nesta irresponsabilidade que os mortos encontram a sua alegria.
Quanto mais o estado de ânimo do senhor Palomar se aproxima daquele que foi aqui descrito, tanto mais a ideia de estar morto se lhe apresenta como uma ideia natural. É verdade que não encontrou ainda a sublime distanciação que pensava que fosse apanágio dos mortos, nem uma razão que vá além de toda e qualquer explicação, nem a saída para fora dos seus próprios limites, como se sai de um túnel que desemboca noutras dimensões. Há momentos em que tem a ilusão de se ter libertado, pelo menos, da impaciência que toda a vida o acompanhou, quando vê os outros errarem em todas as coisas que fazem e pensa que, no lugar deles, também teria errado não menos do que eles, mas que apesar de tudo teria dado por isso. Mas, afinal, de modo algum se conseguiu libertar, e percebe que a impaciência motivada pelos seus erros e pelos erros dos outros se perpetuará juntamente com os próprios erros, que nenhuma morte pode cancelar. Mais vale portanto habituar-se à ideia: para Palomar, estar morto, significa habituar-se à desilusão de se sentir igual a si próprio, num estado definitivo que já não pode esperar modificar.
Palomar não subavalia as vantagens que a condição do vivo pode ter sobre a condição do morto, não no sentido do futuro, onde os riscos são sempre muito fortes e os benefícios podem ser de curta duração, mas sim no sentido da possibilidade de melhorar a forma do nosso próprio passado. (A não ser que uma pessoa esteja já plenamente satisfeita com o seu próprio passado, caso esse que é demasiadamente pouco interessante para que mereça a pena ocuparmo-nos dele). A vida de uma pessoa consiste num conjunto de acontecimentos no qual o último poderia mesmo mudar o sentido de todo o conjunto, não porque conte mais do que os precedentes mas porque, uma vez incluídos na vida, os acontecimentos dispõem-se segundo uma ordem que não é cronológica mas que corresponde a uma arquitectura interna. Uma pessoa, por exemplo, lê na idade madura um livro importante para ela, que a faz dizer: «Como podia viver sem o ter lido!» e ainda: «Que pena não o ter lido quando era jovem!». Pois bem, estas afirmações não fazem muito sentido, sobretudo a segunda, porque a partir do momento em que ela leu aquele livro, a sua vida torna-se a vida de uma pessoa que leu aquele livro, e pouco importa que o tenha lido cedo ou tarde, porque até a vida que precede a leitura assume agora uma forma marcada por aquela leitura.
Este é o passo mais difícil para quem aprende a estar morto: convencer-se de que a sua própria vida é um conjunto fechado, todo no passado, ao qual não se pode juntar nada, nem introduzir modificações de perspectiva na relação entre os vários elementos. É certo que os que continuam vivos podem, com base nas modificações por eles vividas, introduzir modificações inclusive na vida dos mortos, dando forma àquilo que a não tinha ou que parecia ter uma forma rebelde naquele que tinha sido vituperado pelos seus actos contra a lei, celebrando um poeta ou um profeta naquele que se tinha visto condenar à neurose ou ao delírio. Mas são modificações que contam sobretudo para os vivos. Eles, os mortos, dificilmente tiram delas qualquer proveito. Cada um é feito daquilo que viveu e do modo como o viveu, e isto ninguém lho pode tirar. Quem viveu sofrendo, fica feito pelo seu sofrimento; se pretendem tirar-lho, deixa de ser ele.
(…)
E assim, de adiamento em adiamento, chega-se ao momento em que será o tempo a gastar-se e a extinguir-se num céu vazio, quando o último suporte material da memória do viver se tiver degradado numa labareda de calor, ou tiver cristalizado os seus átomos no gelo de uma ordem imóvel.
«Se o tempo tem de se acabar, podemos descrevê-lo, instante a instante — pensa Palomar — e cada instante, ao ser descrito, dilata-se tanto que deixa de se lhe ver o fim.» Decide que se vai pôr a descrever cada instante da sua vida e que, enquanto não os tiver descrito a todos, deixará de pensar que está morto. Naquele momento morre.

in Palomar
tradução de João Reis
estórias, editorial teorema
1985

texto lido, partilhado pela e para a Marta

Hans e a mão direita, Manuel de Castro

Para a Luiza

I
É um sabor a tabaco e amargura, uma estranha lucidez, idêntica à que nos acomete após violenta e prolongada bebedeira.
Falo por experiência própria, como dizem as pessoas falsamente decididas a tudo. É um sabor a tabaco, amargura e perplexidade, este que me acomete cada vez que posso desorientar o destino, isto é, dar-lhe uma direcção, desconhecida, sim, mas diferente da que aparentemente me estava marcada. Falo por experiência própria e explico: Flores? Porquê?
Um dia dizes: "esta é a minha mão direita". E noutro dia um imprevisto, um acidente, uma escaramuça em que alguém acaba por pensar que ganhou aquilo que fica a pensar que ganhou, ou nem escaramuça ou sequer acidente, apenas um inexplicável desaparecimento, te impede de repetir: "esta é a minha mão direita". Ou a mão já não está (decepada, queimada), ou tu não distingues (louco, sem memória), ou morreste (acontece, acontece) ou então é ainda um caso policial de fadas, de ilusão.
Eu digo, por exemplo: "O Hans". Hans é assim a pessoa "a quem se fala". Ou digo: "O Hans". O Hans é a pessoa "de quem se fala". Mas se digo: "Ó Hans, estás cada vez mais pálido" tu, Hans, és a pessoa "de quem e a quem se fala". Contudo, se respondes: "sim ou não, eu, Hans", tu és a pessoa "que e de quem se fala". Repito: "a pessoa que fala e de quem se fala". Como vês, não é assim tão difícil evitar malentendidos. Difícil é o deserto. Difícil é viver com a mão estendida, sempre mais estendida, e não encontrar outra pele, ou apenas o desgosto doutra pele. Eu explico: O Desejo?
Falo por experiência própria, isto é, falo por falar e porque me encontro nesta situação, melhor, na articulação desesperada desta situação deslocada.
Tu, senhora, que me amas e entendes, tu, a quem não repugno pois que, ao ver-me. Ao verme, nem as vísceras (as minhas) imaginas, tu, senhora, és o meu desejo, o cigarro, digo. Eu explico: A epiderme? A carícia?
Ternura, é o que peço. Mas permanente, atenta, pantufas, tépida. Sorrisos e reverências. Histórias, cantos, murmúrios, em que se incluam as palavras "amor" "sempre" e em que se fale de recomplicadas paixões, de corpos frenéticos, de rosas, de primaveras. E explico: A Loucura? A Fantasia?
II
Poder dizer: esta é a minha mão direita, a mão que me serve para comer, para outras coisas, para triturar as moedas de forte metal que me são oferecidas pelos amigos. Todavia não era paixão ou desejo de poder que devorava o meu corpo. Mas uma intensa curiosidade e o vício. Falo do vício falando da morte. Se mergulho numa forma repugnante de vida é apenas porque desconheço o meu destino. Quero um véu que me cubra a lucidez e assim me torne feliz. Para quê o cintilar de lantejoulas à flor da pele? E o brilho? E o novo corpo erguido numa inútil cópia de elegância? Os fados são fátuos e o orgulho é o cilindro vagaroso que digere o meu carácter.
Tu falavas do amor, Hans, e o teu olhar claro e inseguro transmitia-me um pavor inexplicável, mórbido. Apesar de tudo houve entre nós um encontro. Mas tu procuravas em mim alguém que provisoriamente partia para uma viagem rápida e fantasista. E dos teus olhos recebia a serena inocência dos loucos e dos assassinos. Foi um acontecimento em que pouco trocámos excepto a breve necessidade de defesa contra a morte - minha verdadeira amante, nítido final, desejo permanente.
É desta forma e não outra que satisfaço o vício.
De novo te falarei, Hans, com a doce suavidade dos epilépticos recuperados.
Não te movas.
III
Participo-te que me transferi para a Bebedeira Central e que podes encontrar-me em qualquer dia em qualquer parte. Que nada do que vivemos ou desejamos tem importância se não nos dermos a ilusão de vida e importância que devemos tratar como um jogo entre ladrões. Quem dá o que tem, a mais não é obrigado. Resta saber qual de nós recebe ou dá, deseja dar ou receber. Por mim, já ensaboei a vida com todas as coisas belamente empacotadas que os americanos oferecem, e nem por isso a vejo mais limpa ou agradável. Faço parte dos homens que se recusam, isto é, que não se aceitam, o que causa tremendas dificuldades no tráfego, quando obrigatoriamente há que perguntar ao revisor "onde fica a Estrela", "quanto custa", "quando, mas exactamente quando, devo descer?".
Bem vês: é preciso conhecer os nomes das ruas, das cidades, das pessoas, dos países, e tudo esquecer e relembrar de novo se queremos ser, amar, perder, reencontrar e difícil mas aceitavelmente morrer.
Ave et vale.
P.S. Por este mesmo correio envio-te algumas coisas de conserva; nada mais me é possível. Mesmo assim desculpo-me.
IV
Dizer: "esta é a minha mão direita" e morrer com essa convicção, aceitando como boas todas as provas da existência de Deus. Dizer: "esta é a mão que acaricia os objectos" sem que qualquer protesto se faça ouvir; e caminhar cega, incansavelmente, para a destruição, sem um sorriso nem medo. Receber os ruídos e a existência como quem prossegue uma posição social na vida. Esta é a possibilidade de redenção pois que não existe outra forma de redenção senão para o corpo e este não discute.
Se jogamos as cartas (ou outro jogo sem cartas) deixo-te ganhar para não fazer minha a tua preocupação. Isto porque não sou bruto como a maioria dos que se chamam espécie humana, mas apenas pouco feliz.
Disse e repito: o destino assiste impávido a todos os desastres. E o que não disse, invento: os desastres alimentam convulsivamente todos os destinos. O que não há é gente para dar por isso, como dizia o outro. Assim passamos, uns pelos outros, algumas vezes uns com os outros, com bolsos para serem roubados ou para serem poupados.
Podes permanecer deitado, de pé ou sentado mas jamais para teu agrado: unicamente para não alterar uma posição que já está e não vale a pena modificar.
Vejo-te com os olhos normais que usamos neste tempo e defendes-te muito bem, o que não era preciso mas não importa.
Se não saio da jaula é porque as feras andam lá fora. Creio que não lhes observaste atentamente a dentuça quando te sentes compelido a dizer-lhes: "bom dia"; e te respondem. Das feras há pouco bem ou mal a considerar. Esperemos somente que se devorem e nos devorem sem grande música de mandíbulas e ossos.
Nunca me "porei no teu lugar" para pensar porque não tenho nada com isso. Se alguém me afagar os cornos nunca ouvirá (jamais, jamais) um sincero "muito obrigado". Poderá ouvir estas palavras insinceramente ditas muitas vezes e o efeito será o mesmo. Porém a verdade aproximada de que tomo nota é esta: não estender uma só vez o pescoço para o beijo das feras. Se andas por aqui sem o teres pedido, isso constitui já trabalho suficiente para não o encheres de coisas simples que o complicarão ainda mais. E nada mais simples que os beijos que se dão ou recebem; todos os dias vemos gente morrer disso nas situações do costume, isto é, quando o operário põe a máquina a funcionar, quando o patrão não recebeu uma boa encomenda (de automóveis, de chocolates, de ciências aplicadas), quando se dorme ou se está desperto, quando se come ou o contrário, quando para cima e para baixo e para os lados fazemos filhos. Até agora é o que tenho a dizer.
V
A última vez que te encontrei foi diante do Banco Qualquer Coisa. Verificavas o preço das acções. Elas baixaram, não há dúvida. Talvez isso prejudique o teu futuro na América e até mesmo a tua actual capacidade para os estudos. És fraco e não podes impedi-lo. Se fosses resoluto poderias ordenar a um dos responsáveis: "sobe-me essas acções, badameco!"
Não confio já nos santos ou nos poetas e muito menos nos heróis.
Tudo é agora uma questão de mais ou menos brutalidade, de maior ou menor capacidade de matar. Impunemente - é preferível.
As acções baixam - não há dúvida.

VI
Fumo cigarro atrás de cigarro para preencher a vida. É a náusea de quem entende inútil a inteligência. Hoje neva e tenho o coração repleto de nicotina nos dois sentidos literais da expressão. O tempo vai passar (é indubitável) mas entretanto esgota-me este esforço de espera. Quando partir para nova viagem de novo errada talvez (Ó Esperança) possa levar comigo o perfume de tudo o que amei porque o acreditava possível.
Pergunto-me onde estás, Hans, que fazes, e não encontro resposta para este meu estado de indecisão.
Nós somos o que somos; as comparações, os símbolos que utilizamos para falarmos de nós próprios são necessários apenas porque é com palavras que praticamos a tímida tentativa de entendimento à superfície.
Eis um domínio que me é pouco compreensível.
VII
Dizes: "esta é a minha mão direita". É uma forma de transitar pelas instituições, pelos edifícios públicos e, quando calha, por um carnaval de acidente. Triunfo inglório, que passa desapercebido, cuja importância só existe por (sem que o possas evitar) te situares no centro do mundo.
É preciso particularizar as palavras; quando a palavra NORTE surge não é a palavra ou a direcção norte que constituem o principal, mas sim o lugar em que se está, para aquém, na, e para além da geografia. Assim tu, Hans, és também uma cidade e o seu sentimento. Fechamos o coração por medo: do ridículo, do escândalo, da polícia, do dinheiro, da prisão. Isso é que é ridículo Pensa um pouco: existe hoje um sítio mais pacífico e aprazível do que a cela de uma prisão? E mais livre? - devo acrescentar. Estamos no tempo apocalíptico das Bestas, não o esqueças. Bestas de metal e de carne que não sossegam, não cansam e tudo destroem à sua passagem. É o fulano que mais percebe de máquinas de lavar papel de seda e cargas para isqueiros a petróleo, e a sicrana que não percebe, realmente não percebe, como se pode viver em tal sujidade; da moral e da outra.
Inútil, inútil: nem a mão aberta ou o chicote, nem o sacrifício ou o combate. Nicles. Percebe?
VIII
Só o médico, madame, só o médico para antes da morte. E o médico aí está, desta vez sem bata branca de espantar, com um relógio de pulso em ouro (oferta de um que não morreu tão depressa) e as maxilas em bom estado ainda. Ele dizia-te, Hans:
- Por favor, madame, tente abrir a sua mão direita.
Mas ela não está, Hans, ela é agora um bólide que gira em torno da terra. Tu respondes:
- Já não tenho mão direita, doutor.
- Nesse caso, madame, se desiste assim tão facilmente, acaba por ficar sem nada.
E tu, resignada:
- Não tem importância. Acontece a toda a gente.
IX
Aqui está a minha mão direita, com a qual aceitei presunto por esmola, com a qual acariciei o sexo de quem me deixou, paguei o pão excepto nos dias em que não o comi ou me foi oferecido. Ela nasce de um certo tamanho, depois cresce, por fim decresce.
Um falus, simplesmente mais lento.
A expressão "estás sempre a meter o nariz em toda a parte" não pode ser substituída por "estás sempre a meter a mão em toda a parte" porque esta segunda é evidentemente obscena, ou pelo menos as leis o dizem e há que pagá-las.
X
Não falemos de política, Hans, não falemos de política.
XI
Colocas a tua mão direita sobre o coração ao adormecer e regularizas deste modo o incómodo do tempo em que estiveste acordado, do tempo que houve que preencher com o absurdo quotidiano. Essa mão direita é uma aranha pacífica e atenta que ganhou também o seu repouso e um sonho que não é possível controlar nem situar na caótica convulsão do universo que a cada um pertence.
Dormes. E enquanto lutas com um grupo de bandidos num Rio de Janeiro onde nunca estiveste, enquanto assistes à passagem de semblantes luminosos de gente que deve ter morrido há muito tempo, ou enquanto sorris internamente perante uma história que existe no outro lado da realidade, a tua mão continua a arder, independente, na lenta combustão que a tornará lívida, inerte, dura e terrível, no transitório momento que separa a vida do apodrecimento. O sonho é apenas uma outra forma da realidade e talvez (quem o sabe?) a morte o seja também. Porém o que definitivamente se transforma é a tua mão direita, essa peça que tão descuidadamente transportas, como se fosse um direito absoluto a posse desse extravagante objecto, como se a memória te impedisse de observar o monstruoso teatro que ela, a mão, executa durante aquilo a que chamamos tempo. As unhas. Os dedos. As articulações. E algo ainda. Como aceitar impassível a presença da mão, desse pequeno corpo a cujo movimento não podes assistir atenta, continuamente? Estamos fabricados para as ideias gerais mas nada existe nelas que nos ofereça um pouco de paz, um pouco de certeza no destino de todos e cada um.
Acordas. Eis a tua mão direita que se move numa direcção que lhe é própria, e se te pergunto que fizeste com ela, que tens feito com ela, qual o seu futuro, então entenderás quanto o domínio, a percepção e o controle das diversas realidades te é interdito.


in GRIFO, ANTOLOGIA DE INÉDITOS ORGANIZADA E EDITADA PELOS AUTORES, 1970

Esta antologia, entre outros, contém textos de António José Forte, Ernesto Sampaio, Maria Helena Barreiro, Pedro Oom, Ricarte Dácio e Virgílio Martinho, e dois desenhos de João Rodrigues.

texto lido, partilhado, oferecido pela e para a Marta

exijo-me fazer um tecto destes, lá, na tal a casa

trilogia do dia

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http://upload.moldova.org/movie/movies/v/vicky_cristina_barcelona/thumbnails/tn2_vicky_cristina_barcelona_3.jpg


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http://bravonline.abril.com.br/imagem/134_ci_aespera_g.jpg

devo andar a chocar alguma

subitamente, dei por mim com vontade* de trabalhar

* do Lat. voluntate
s. f.,
potência ou faculdade interior, em virtude da qual o homem se determina a fazer ou não fazer alguma coisa;
espontaneidade; intenção; ânimo; domínio; desejo; necessidade; desígnio; talante; capricho.

get set


surripiado ao Paulo

hoje I 18.00 I TAGV

http://olamtagv.files.wordpress.com/2009/01/olam_nunojud_big.jpg

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d'Os Livros Ardem Mal

judice

Hoje, pelas 18 h, no foyer do Teatro Académico Gil Vicente, terá lugar a 5ª sessão de Os Livros Ardem Mal na temporada de 2008/09. O convidado é Nuno Júdice, poeta, ficcionista, dramaturgo, ensaísta, recém-nomeado director da Colóquio/Letras. O painel será constituído por António Apolinário Lourenço, Luís Quintais e Osvaldo Manuel Silvestre, que moderará.

Na primera parte da sessão serão apresentados os seguintes livros:

  • Rui Lage, Corvo, Famalicão, Quasi Edições, 2008. [ISBN 978-989-552-397-9]
  • António Pinho Vargas, Cinco Conferências. Especulações Críticas sobre a História da Música no Século XX, Lisboa, Culturgest, 2008. [ISBN 978-972-769-064]
  • Oliver Sacks, Musicofilia. Histórias sobre a Música e o Cérebro, Lisboa, Relógio d’Água, 2008. [ISBN 978-972-708-997-0]
  • David Lodge, A Consciência e o Romance, Porto, Asa, 2008. [ISBN 978-989-23-0368-0]
  • Manuel Loff, O nosso Século é Fascista. O Mundo Visto por Salazar e Franco (1936-1945), Porto, Campo das Letras, 2008. [ISBN: 978-989-625-256-4]
  • Richard Zenith, Fernando Pessoa (Fotobiografias Século XX), Lisboa, Círculo de Leitores, 2008. [ISBN: 978-972-42-4349-8]