sandra aka margarete ~ acknowledgeyourself@gmail.com

Hans e a mão direita, Manuel de Castro

Para a Luiza

I
É um sabor a tabaco e amargura, uma estranha lucidez, idêntica à que nos acomete após violenta e prolongada bebedeira.
Falo por experiência própria, como dizem as pessoas falsamente decididas a tudo. É um sabor a tabaco, amargura e perplexidade, este que me acomete cada vez que posso desorientar o destino, isto é, dar-lhe uma direcção, desconhecida, sim, mas diferente da que aparentemente me estava marcada. Falo por experiência própria e explico: Flores? Porquê?
Um dia dizes: "esta é a minha mão direita". E noutro dia um imprevisto, um acidente, uma escaramuça em que alguém acaba por pensar que ganhou aquilo que fica a pensar que ganhou, ou nem escaramuça ou sequer acidente, apenas um inexplicável desaparecimento, te impede de repetir: "esta é a minha mão direita". Ou a mão já não está (decepada, queimada), ou tu não distingues (louco, sem memória), ou morreste (acontece, acontece) ou então é ainda um caso policial de fadas, de ilusão.
Eu digo, por exemplo: "O Hans". Hans é assim a pessoa "a quem se fala". Ou digo: "O Hans". O Hans é a pessoa "de quem se fala". Mas se digo: "Ó Hans, estás cada vez mais pálido" tu, Hans, és a pessoa "de quem e a quem se fala". Contudo, se respondes: "sim ou não, eu, Hans", tu és a pessoa "que e de quem se fala". Repito: "a pessoa que fala e de quem se fala". Como vês, não é assim tão difícil evitar malentendidos. Difícil é o deserto. Difícil é viver com a mão estendida, sempre mais estendida, e não encontrar outra pele, ou apenas o desgosto doutra pele. Eu explico: O Desejo?
Falo por experiência própria, isto é, falo por falar e porque me encontro nesta situação, melhor, na articulação desesperada desta situação deslocada.
Tu, senhora, que me amas e entendes, tu, a quem não repugno pois que, ao ver-me. Ao verme, nem as vísceras (as minhas) imaginas, tu, senhora, és o meu desejo, o cigarro, digo. Eu explico: A epiderme? A carícia?
Ternura, é o que peço. Mas permanente, atenta, pantufas, tépida. Sorrisos e reverências. Histórias, cantos, murmúrios, em que se incluam as palavras "amor" "sempre" e em que se fale de recomplicadas paixões, de corpos frenéticos, de rosas, de primaveras. E explico: A Loucura? A Fantasia?
II
Poder dizer: esta é a minha mão direita, a mão que me serve para comer, para outras coisas, para triturar as moedas de forte metal que me são oferecidas pelos amigos. Todavia não era paixão ou desejo de poder que devorava o meu corpo. Mas uma intensa curiosidade e o vício. Falo do vício falando da morte. Se mergulho numa forma repugnante de vida é apenas porque desconheço o meu destino. Quero um véu que me cubra a lucidez e assim me torne feliz. Para quê o cintilar de lantejoulas à flor da pele? E o brilho? E o novo corpo erguido numa inútil cópia de elegância? Os fados são fátuos e o orgulho é o cilindro vagaroso que digere o meu carácter.
Tu falavas do amor, Hans, e o teu olhar claro e inseguro transmitia-me um pavor inexplicável, mórbido. Apesar de tudo houve entre nós um encontro. Mas tu procuravas em mim alguém que provisoriamente partia para uma viagem rápida e fantasista. E dos teus olhos recebia a serena inocência dos loucos e dos assassinos. Foi um acontecimento em que pouco trocámos excepto a breve necessidade de defesa contra a morte - minha verdadeira amante, nítido final, desejo permanente.
É desta forma e não outra que satisfaço o vício.
De novo te falarei, Hans, com a doce suavidade dos epilépticos recuperados.
Não te movas.
III
Participo-te que me transferi para a Bebedeira Central e que podes encontrar-me em qualquer dia em qualquer parte. Que nada do que vivemos ou desejamos tem importância se não nos dermos a ilusão de vida e importância que devemos tratar como um jogo entre ladrões. Quem dá o que tem, a mais não é obrigado. Resta saber qual de nós recebe ou dá, deseja dar ou receber. Por mim, já ensaboei a vida com todas as coisas belamente empacotadas que os americanos oferecem, e nem por isso a vejo mais limpa ou agradável. Faço parte dos homens que se recusam, isto é, que não se aceitam, o que causa tremendas dificuldades no tráfego, quando obrigatoriamente há que perguntar ao revisor "onde fica a Estrela", "quanto custa", "quando, mas exactamente quando, devo descer?".
Bem vês: é preciso conhecer os nomes das ruas, das cidades, das pessoas, dos países, e tudo esquecer e relembrar de novo se queremos ser, amar, perder, reencontrar e difícil mas aceitavelmente morrer.
Ave et vale.
P.S. Por este mesmo correio envio-te algumas coisas de conserva; nada mais me é possível. Mesmo assim desculpo-me.
IV
Dizer: "esta é a minha mão direita" e morrer com essa convicção, aceitando como boas todas as provas da existência de Deus. Dizer: "esta é a mão que acaricia os objectos" sem que qualquer protesto se faça ouvir; e caminhar cega, incansavelmente, para a destruição, sem um sorriso nem medo. Receber os ruídos e a existência como quem prossegue uma posição social na vida. Esta é a possibilidade de redenção pois que não existe outra forma de redenção senão para o corpo e este não discute.
Se jogamos as cartas (ou outro jogo sem cartas) deixo-te ganhar para não fazer minha a tua preocupação. Isto porque não sou bruto como a maioria dos que se chamam espécie humana, mas apenas pouco feliz.
Disse e repito: o destino assiste impávido a todos os desastres. E o que não disse, invento: os desastres alimentam convulsivamente todos os destinos. O que não há é gente para dar por isso, como dizia o outro. Assim passamos, uns pelos outros, algumas vezes uns com os outros, com bolsos para serem roubados ou para serem poupados.
Podes permanecer deitado, de pé ou sentado mas jamais para teu agrado: unicamente para não alterar uma posição que já está e não vale a pena modificar.
Vejo-te com os olhos normais que usamos neste tempo e defendes-te muito bem, o que não era preciso mas não importa.
Se não saio da jaula é porque as feras andam lá fora. Creio que não lhes observaste atentamente a dentuça quando te sentes compelido a dizer-lhes: "bom dia"; e te respondem. Das feras há pouco bem ou mal a considerar. Esperemos somente que se devorem e nos devorem sem grande música de mandíbulas e ossos.
Nunca me "porei no teu lugar" para pensar porque não tenho nada com isso. Se alguém me afagar os cornos nunca ouvirá (jamais, jamais) um sincero "muito obrigado". Poderá ouvir estas palavras insinceramente ditas muitas vezes e o efeito será o mesmo. Porém a verdade aproximada de que tomo nota é esta: não estender uma só vez o pescoço para o beijo das feras. Se andas por aqui sem o teres pedido, isso constitui já trabalho suficiente para não o encheres de coisas simples que o complicarão ainda mais. E nada mais simples que os beijos que se dão ou recebem; todos os dias vemos gente morrer disso nas situações do costume, isto é, quando o operário põe a máquina a funcionar, quando o patrão não recebeu uma boa encomenda (de automóveis, de chocolates, de ciências aplicadas), quando se dorme ou se está desperto, quando se come ou o contrário, quando para cima e para baixo e para os lados fazemos filhos. Até agora é o que tenho a dizer.
V
A última vez que te encontrei foi diante do Banco Qualquer Coisa. Verificavas o preço das acções. Elas baixaram, não há dúvida. Talvez isso prejudique o teu futuro na América e até mesmo a tua actual capacidade para os estudos. És fraco e não podes impedi-lo. Se fosses resoluto poderias ordenar a um dos responsáveis: "sobe-me essas acções, badameco!"
Não confio já nos santos ou nos poetas e muito menos nos heróis.
Tudo é agora uma questão de mais ou menos brutalidade, de maior ou menor capacidade de matar. Impunemente - é preferível.
As acções baixam - não há dúvida.

VI
Fumo cigarro atrás de cigarro para preencher a vida. É a náusea de quem entende inútil a inteligência. Hoje neva e tenho o coração repleto de nicotina nos dois sentidos literais da expressão. O tempo vai passar (é indubitável) mas entretanto esgota-me este esforço de espera. Quando partir para nova viagem de novo errada talvez (Ó Esperança) possa levar comigo o perfume de tudo o que amei porque o acreditava possível.
Pergunto-me onde estás, Hans, que fazes, e não encontro resposta para este meu estado de indecisão.
Nós somos o que somos; as comparações, os símbolos que utilizamos para falarmos de nós próprios são necessários apenas porque é com palavras que praticamos a tímida tentativa de entendimento à superfície.
Eis um domínio que me é pouco compreensível.
VII
Dizes: "esta é a minha mão direita". É uma forma de transitar pelas instituições, pelos edifícios públicos e, quando calha, por um carnaval de acidente. Triunfo inglório, que passa desapercebido, cuja importância só existe por (sem que o possas evitar) te situares no centro do mundo.
É preciso particularizar as palavras; quando a palavra NORTE surge não é a palavra ou a direcção norte que constituem o principal, mas sim o lugar em que se está, para aquém, na, e para além da geografia. Assim tu, Hans, és também uma cidade e o seu sentimento. Fechamos o coração por medo: do ridículo, do escândalo, da polícia, do dinheiro, da prisão. Isso é que é ridículo Pensa um pouco: existe hoje um sítio mais pacífico e aprazível do que a cela de uma prisão? E mais livre? - devo acrescentar. Estamos no tempo apocalíptico das Bestas, não o esqueças. Bestas de metal e de carne que não sossegam, não cansam e tudo destroem à sua passagem. É o fulano que mais percebe de máquinas de lavar papel de seda e cargas para isqueiros a petróleo, e a sicrana que não percebe, realmente não percebe, como se pode viver em tal sujidade; da moral e da outra.
Inútil, inútil: nem a mão aberta ou o chicote, nem o sacrifício ou o combate. Nicles. Percebe?
VIII
Só o médico, madame, só o médico para antes da morte. E o médico aí está, desta vez sem bata branca de espantar, com um relógio de pulso em ouro (oferta de um que não morreu tão depressa) e as maxilas em bom estado ainda. Ele dizia-te, Hans:
- Por favor, madame, tente abrir a sua mão direita.
Mas ela não está, Hans, ela é agora um bólide que gira em torno da terra. Tu respondes:
- Já não tenho mão direita, doutor.
- Nesse caso, madame, se desiste assim tão facilmente, acaba por ficar sem nada.
E tu, resignada:
- Não tem importância. Acontece a toda a gente.
IX
Aqui está a minha mão direita, com a qual aceitei presunto por esmola, com a qual acariciei o sexo de quem me deixou, paguei o pão excepto nos dias em que não o comi ou me foi oferecido. Ela nasce de um certo tamanho, depois cresce, por fim decresce.
Um falus, simplesmente mais lento.
A expressão "estás sempre a meter o nariz em toda a parte" não pode ser substituída por "estás sempre a meter a mão em toda a parte" porque esta segunda é evidentemente obscena, ou pelo menos as leis o dizem e há que pagá-las.
X
Não falemos de política, Hans, não falemos de política.
XI
Colocas a tua mão direita sobre o coração ao adormecer e regularizas deste modo o incómodo do tempo em que estiveste acordado, do tempo que houve que preencher com o absurdo quotidiano. Essa mão direita é uma aranha pacífica e atenta que ganhou também o seu repouso e um sonho que não é possível controlar nem situar na caótica convulsão do universo que a cada um pertence.
Dormes. E enquanto lutas com um grupo de bandidos num Rio de Janeiro onde nunca estiveste, enquanto assistes à passagem de semblantes luminosos de gente que deve ter morrido há muito tempo, ou enquanto sorris internamente perante uma história que existe no outro lado da realidade, a tua mão continua a arder, independente, na lenta combustão que a tornará lívida, inerte, dura e terrível, no transitório momento que separa a vida do apodrecimento. O sonho é apenas uma outra forma da realidade e talvez (quem o sabe?) a morte o seja também. Porém o que definitivamente se transforma é a tua mão direita, essa peça que tão descuidadamente transportas, como se fosse um direito absoluto a posse desse extravagante objecto, como se a memória te impedisse de observar o monstruoso teatro que ela, a mão, executa durante aquilo a que chamamos tempo. As unhas. Os dedos. As articulações. E algo ainda. Como aceitar impassível a presença da mão, desse pequeno corpo a cujo movimento não podes assistir atenta, continuamente? Estamos fabricados para as ideias gerais mas nada existe nelas que nos ofereça um pouco de paz, um pouco de certeza no destino de todos e cada um.
Acordas. Eis a tua mão direita que se move numa direcção que lhe é própria, e se te pergunto que fizeste com ela, que tens feito com ela, qual o seu futuro, então entenderás quanto o domínio, a percepção e o controle das diversas realidades te é interdito.


in GRIFO, ANTOLOGIA DE INÉDITOS ORGANIZADA E EDITADA PELOS AUTORES, 1970

Esta antologia, entre outros, contém textos de António José Forte, Ernesto Sampaio, Maria Helena Barreiro, Pedro Oom, Ricarte Dácio e Virgílio Martinho, e dois desenhos de João Rodrigues.

texto lido, partilhado, oferecido pela e para a Marta

2 comentários:

Anónimo disse...

Estou a recordar no meu Blog Estar Presente - http://jramosfranco1.blogspot.com/ o Grupo do Cafe Gelo, a sua passagem para o Cafe Monte Carlo e deste os escritores que se reunião na minha casa da Rua Viririato. Falta-me documentos sobre o Ricarte Dácio. Sera possivel dar-me uma ajuda?
Grato,
João Franco

Anónimo disse...

Estou a recordar no meu Blog Estar Presente - http://jramosfranco1.blogspot.com/ o Grupo do Cafe Gelo, a sua passagem para o Cafe Monte Carlo e deste os escritores que se reunião na minha casa da Rua Viririato. Falta-me documentos sobre o Ricarte Dácio. Sera possivel dar-me uma ajuda?
Grato,
João Franco