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[Oriente] e [a lei do deix'andar]

Oriente
por Ana Cássia Rebelo

 Corro durante horas, quando a noite cai, as mulheres chinesas chegam para jogar a sorte no casino, há um pintor num primeiro andar, pingam as telas no parapeito, faço a subida do hospital, uma, duas, três vezes, já não me canso, levo a boca fechada, levo o corpo fechado, cosido, cozido, cruzo-me com enfermeiras que terminam o turno, lembro a minha mãe de farda posta, tantas nervurinhas, os sapatos de calfe brancos que lhe moiam os pés, o chapéu engomado sobre o cabelo penteado, o filho que lhe morreu e que todos esquecemos, ficou ela, sozinha, com essa lembrança. Subo as escadas do pavilhão em passo rápido, está o parque deserto, tanta melancolia e solidão na noite de Lisboa. Como é bonita a tristeza. Corro para cansar o corpo, para o adormecer. 



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a lei do deix'andar
por Catarina

É preciso, digo eu, que uma pessoa se habitue a que isto seja assim, a que isto seja a paz, e que a paz seja afinal algo de muito diferente do que se previra. Que a paz não é um estado de graça prolongado, não senhor, mas antes uma dignidade perante toda a emoção, ou falta dela. Quero dizer: a paz de andar feliz por Lisboa, contemplativa, debaixo do milagre; e a paz de andar triste por Lisboa, sem texto, debaixo de milagre outro.

De uma forma mais prática: a paz da tensão pré-menstrual, a paz do mau humor depois da sesta curta, a paz dos transportes públicos sempre muito cheios, a paz das ruas sempre muito sujas. A paz do que não é certo, do que não corre bem, ou do que simplesmente nem chega a correr, a paz do que falha, do que se tenta, e do que não se tenta. A paz do que se conhece e do que está por conhecer.

É por aqui que ando, agora. Às vezes não interessa mudar, interessa aceitar. E aceitando, é deixar andar. Não me julgues.

in A Trama