Meu querido querido,
Sei que sabes que não tenho escrito, nem sequer se trata da ausência do acto de me dirigir à estação dos correios. Trata-se antes de afonia, nada de novo como nunca o é. Sou eu, todos os dias, os dias todos, a viver a revisão da matéria do próprio dia dentro do dia. Não sei explicar como ainda não me encharquei. Um fenómeno.
Como estás? Como te encontra esta carta?
Viste o telejornal? Viste o que aconteceu lá na capital? Sabes que não comentarei, apenas fiquei preocupada, pensei: pronto, mais lenha. Preocupo-me.
Preocupo-me contigo.
Tens comido bem?
Falta pouco tempo para a minha chegada, já tenho a lista do que depois te deixarei preparado na arca congeladora. Sabes que vou ralhar se chegar e vir que não comeste nem metade. Ao menos dá ao cão, para disfarçar, olha que ele agradece.
Não são como os homens. Os cães não têm amizades de toca-e-foge.
É por isso que eu tenho um gato, para não me distrair, para ter sempre presente o condicionalmente limitado. O homem, a mulher, nós sabemos, são cada vez mais estreitos nas suas condições.
Fazem bem, é da liberdade.
Por falar em liberdade, tenho aqui alguns embrulhos para levar e não digo quantos são, mas não me aguento sem te dizer que um deles chegou de Benguela. Aposto que não tens nenhum à altura deste. O prémio “encomenda mais bonita” desta vez vai para mim e até já sei o que vou querer (não vale a pena dizer que o prémio são beijos, esses, vais dar-mos com ou sem concurso de encomendas). Também não adianto assunto sobre o prémio que vou pedir, e vamos a ver se consegues disfarçar a curiosidade.
Em duas idas à vila, entre as encomendas do correio e as lojas, trouxe tesouros, hei-de ver-te todo sorrisos quando nos sentarmos no chão da sala, em cima da manta, a abrir um-a-um. Brinquedos autênticos.
Ah, e comprei um vestido, não vais gostar da cor, ou antes, não costumas gostar. Adivinhaste: é vermelho. Fica-me bem. Mudei de ideias, acho que vais gostar.
Tanta escritura e ainda nem te contei as novidades cá da terra… Custa a dizer, mas emigraram mais duas famílias, emigram sempre dos que fazem cá falta, pelo menos é o que tem acontecido aqui. Não fiques triste, mas um deles foi o padeiro. Eu sei, eu sei. Foi-se a vida que a padaria dava ali ao largo. Resta a missa ao Sábado à tarde para juntar dois ou três gatos (gatas) pingados no largo. Não sei se já te tinha dito, mas, desde que morreu o padre “casado”, já só há missa aos Sábados às cinco da tarde. Não é pela falta que me faça a cerimónia, bem sabes, é pelo encontro da gente. Faz falta. Falei com o merceeiro e vamos organizar leilões ao Domingo à tarde. (mais uma desculpa para eu fazer bolos) Ainda não sabemos o que vamos fazer com o dinheiro, mas temos uma certeza e, quer acredites quer não, quem teve a ideia foi uma das beatas: o dinheiro não irá para a igreja. Ou doamos ou alugamos uma camioneta para irmos todos passar uma tarde ao Agroal no Verão.
Enfim, cá se vai andando com a cabeça entre as orelhas, está a acabar o espaço e não gosto de encher mais do que uma folha com palavreado num só dia.
Como estás? Como te encontrou esta carta?
Fica bem, por favor, e espera por mim que estou quase a chegar, há-de ser para te abraçar e para te beijar, e para ser abraçada, por ti, meu querido
Querido
eu
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