sandra aka margarete ~ acknowledgeyourself@gmail.com
{correspondência}
Meu querido querido,
Sei que sabes que não tenho escrito, nem sequer se trata da ausência do acto de me dirigir à estação dos correios. Trata-se antes de afonia, nada de novo como nunca o é. Sou eu, todos os dias, os dias todos, a viver a revisão da matéria do próprio dia dentro do dia. Não sei explicar como ainda não me encharquei. Um fenómeno.
Como estás? Como te encontra esta carta?
Viste o telejornal? Viste o que aconteceu lá na capital? Sabes que não comentarei, apenas fiquei preocupada, pensei: pronto, mais lenha. Preocupo-me.
Preocupo-me contigo.
Tens comido bem?
Falta pouco tempo para a minha chegada, já tenho a lista do que depois te deixarei preparado na arca congeladora. Sabes que vou ralhar se chegar e vir que não comeste nem metade. Ao menos dá ao cão, para disfarçar, olha que ele agradece.
Não são como os homens. Os cães não têm amizades de toca-e-foge.
É por isso que eu tenho um gato, para não me distrair, para ter sempre presente o condicionalmente limitado. O homem, a mulher, nós sabemos, são cada vez mais estreitos nas suas condições.
Fazem bem, é da liberdade.
Por falar em liberdade, tenho aqui alguns embrulhos para levar e não digo quantos são, mas não me aguento sem te dizer que um deles chegou de Benguela. Aposto que não tens nenhum à altura deste. O prémio “encomenda mais bonita” desta vez vai para mim e até já sei o que vou querer (não vale a pena dizer que o prémio são beijos, esses, vais dar-mos com ou sem concurso de encomendas). Também não adianto assunto sobre o prémio que vou pedir, e vamos a ver se consegues disfarçar a curiosidade.
Em duas idas à vila, entre as encomendas do correio e as lojas, trouxe tesouros, hei-de ver-te todo sorrisos quando nos sentarmos no chão da sala, em cima da manta, a abrir um-a-um. Brinquedos autênticos.
Ah, e comprei um vestido, não vais gostar da cor, ou antes, não costumas gostar. Adivinhaste: é vermelho. Fica-me bem. Mudei de ideias, acho que vais gostar.
Tanta escritura e ainda nem te contei as novidades cá da terra… Custa a dizer, mas emigraram mais duas famílias, emigram sempre dos que fazem cá falta, pelo menos é o que tem acontecido aqui. Não fiques triste, mas um deles foi o padeiro. Eu sei, eu sei. Foi-se a vida que a padaria dava ali ao largo. Resta a missa ao Sábado à tarde para juntar dois ou três gatos (gatas) pingados no largo. Não sei se já te tinha dito, mas, desde que morreu o padre “casado”, já só há missa aos Sábados às cinco da tarde. Não é pela falta que me faça a cerimónia, bem sabes, é pelo encontro da gente. Faz falta. Falei com o merceeiro e vamos organizar leilões ao Domingo à tarde. (mais uma desculpa para eu fazer bolos) Ainda não sabemos o que vamos fazer com o dinheiro, mas temos uma certeza e, quer acredites quer não, quem teve a ideia foi uma das beatas: o dinheiro não irá para a igreja. Ou doamos ou alugamos uma camioneta para irmos todos passar uma tarde ao Agroal no Verão.
Enfim, cá se vai andando com a cabeça entre as orelhas, está a acabar o espaço e não gosto de encher mais do que uma folha com palavreado num só dia.
Como estás? Como te encontrou esta carta?
Fica bem, por favor, e espera por mim que estou quase a chegar, há-de ser para te abraçar e para te beijar, e para ser abraçada, por ti, meu querido
Querido
eu
Sei que sabes que não tenho escrito, nem sequer se trata da ausência do acto de me dirigir à estação dos correios. Trata-se antes de afonia, nada de novo como nunca o é. Sou eu, todos os dias, os dias todos, a viver a revisão da matéria do próprio dia dentro do dia. Não sei explicar como ainda não me encharquei. Um fenómeno.
Como estás? Como te encontra esta carta?
Viste o telejornal? Viste o que aconteceu lá na capital? Sabes que não comentarei, apenas fiquei preocupada, pensei: pronto, mais lenha. Preocupo-me.
Preocupo-me contigo.
Tens comido bem?
Falta pouco tempo para a minha chegada, já tenho a lista do que depois te deixarei preparado na arca congeladora. Sabes que vou ralhar se chegar e vir que não comeste nem metade. Ao menos dá ao cão, para disfarçar, olha que ele agradece.
Não são como os homens. Os cães não têm amizades de toca-e-foge.
É por isso que eu tenho um gato, para não me distrair, para ter sempre presente o condicionalmente limitado. O homem, a mulher, nós sabemos, são cada vez mais estreitos nas suas condições.
Fazem bem, é da liberdade.
Por falar em liberdade, tenho aqui alguns embrulhos para levar e não digo quantos são, mas não me aguento sem te dizer que um deles chegou de Benguela. Aposto que não tens nenhum à altura deste. O prémio “encomenda mais bonita” desta vez vai para mim e até já sei o que vou querer (não vale a pena dizer que o prémio são beijos, esses, vais dar-mos com ou sem concurso de encomendas). Também não adianto assunto sobre o prémio que vou pedir, e vamos a ver se consegues disfarçar a curiosidade.
Em duas idas à vila, entre as encomendas do correio e as lojas, trouxe tesouros, hei-de ver-te todo sorrisos quando nos sentarmos no chão da sala, em cima da manta, a abrir um-a-um. Brinquedos autênticos.
Ah, e comprei um vestido, não vais gostar da cor, ou antes, não costumas gostar. Adivinhaste: é vermelho. Fica-me bem. Mudei de ideias, acho que vais gostar.
Tanta escritura e ainda nem te contei as novidades cá da terra… Custa a dizer, mas emigraram mais duas famílias, emigram sempre dos que fazem cá falta, pelo menos é o que tem acontecido aqui. Não fiques triste, mas um deles foi o padeiro. Eu sei, eu sei. Foi-se a vida que a padaria dava ali ao largo. Resta a missa ao Sábado à tarde para juntar dois ou três gatos (gatas) pingados no largo. Não sei se já te tinha dito, mas, desde que morreu o padre “casado”, já só há missa aos Sábados às cinco da tarde. Não é pela falta que me faça a cerimónia, bem sabes, é pelo encontro da gente. Faz falta. Falei com o merceeiro e vamos organizar leilões ao Domingo à tarde. (mais uma desculpa para eu fazer bolos) Ainda não sabemos o que vamos fazer com o dinheiro, mas temos uma certeza e, quer acredites quer não, quem teve a ideia foi uma das beatas: o dinheiro não irá para a igreja. Ou doamos ou alugamos uma camioneta para irmos todos passar uma tarde ao Agroal no Verão.
Enfim, cá se vai andando com a cabeça entre as orelhas, está a acabar o espaço e não gosto de encher mais do que uma folha com palavreado num só dia.
Como estás? Como te encontrou esta carta?
Fica bem, por favor, e espera por mim que estou quase a chegar, há-de ser para te abraçar e para te beijar, e para ser abraçada, por ti, meu querido
Querido
eu
o chamado covil [ coisas do vouyerismo ]
as horas passam e eu pergunto:
vamos fazer alguma coisa em relação a isto
ou vamos ser os mesmos enconados do costume?
imaginava que, de manhã, na esquadra, havia uma cena tipo hill street blues em que o Capt Furrilo dizia: vá, pessoal, vamos para a rua combater bandidos, tenham cuidado
# mania desta gente sempre a dar cabo do meu imaginário
# devem ser dos tais cabrões de vindouros de que falava o José Mário Branco quando escreveu o FMI
# em Coimbra, parece que saíram tantos à rua quantos os que (não portugueses) saíram em Paris, isto 'tá bonito de tanto manso
# em Coimbra, parece que saíram tantos à rua quantos os que (não portugueses) saíram em Paris, isto 'tá bonito de tanto manso
azeite versus óleo
Comi um pastel de bacalhau
que me enganou. A sua imagem
fazia-me adivinhar um belo momento
a folhear o jornal
intercalando
pastel de bacalhau e café.
Mas não,
alguém colaborou para me estragar
o momento,
ao tocá-lo com os lábios, senti o óleo
velho, olhei-o de frente
reparei:
tinha bacalhau de verdade
(para além da batata, bem se vê).
Comi-o todo. Todo.
Se descubro quem me anda a encher
de óleo velho e rançoso,
respondo por mim.
que me enganou. A sua imagem
fazia-me adivinhar um belo momento
a folhear o jornal
intercalando
pastel de bacalhau e café.
Mas não,
alguém colaborou para me estragar
o momento,
ao tocá-lo com os lábios, senti o óleo
velho, olhei-o de frente
reparei:
tinha bacalhau de verdade
(para além da batata, bem se vê).
Comi-o todo. Todo.
Se descubro quem me anda a encher
de óleo velho e rançoso,
respondo por mim.
o dia dela
hoje, cerca das 7h50, a fazer zapping pelas rádios habituais deixei ficar na Antena 2. ignorante que sou, não vos sei identificar a música que passava. sei que estremeci quando se deu uma interrupção na emissão da música de cordas para se ouvir, na voz dele, "apenas" isto:
ama como a estrada começa
still deste documentário |
e continuaram as cordas a tocar. lindo. feliz dia da poesia, minha gente
♥ feliz dia do pai ♥
to all the papas out there, beautiful boys
a sunday afternoon with dad (1979/80)
som: beautiful boyz, cocorosie & antony
o lado sombrio da vida
A doença é o lado sombrio da vida, uma cidadania bem pesada. Ao nascer, todos nós adquirimos uma dupla cidadania: a do reino da saúde e a do reino da doença. E muito embora todos preferíssemos usar o bom passaporte, mais tarde ou mais cedo cada um de nós se vê obrigado, ainda que momentaneamente, a identificar-se como cidadão da outra zona.
O meu propósito não é tanto descrever o que significa relamente emigrar para o reino da doença e aí viver, mas antes as fantasias punitivas ou sentimentais que se constroem acerca dessa situação: não uma geografia real, mas antes estereótipos de carácter nacional. O meu tema não é a doença física em si, mas o uso que se faz da doença como figura ou metáfora.
A minha tese é de que a doença não é uma metáfora, e o modo mais honesto de olhar a doença - e o modo mais são de estar doente - é o olhar mais depurado, mais resistente ao pensamento metafórico. Mas é praticamente impossível fixarmos residência no reino da doença incontaminados pelas sinistras metáforas que lhe desenharam a paisagem. Elucidar tais metáforas, sacudir o seu jugo, constitui o objectivo deste estudo.
Susan Sontag in A Doença como Metáfora e A Sida e as suas Metáforas
Quetzal Editores
1998
nota: este ensaio foi escrito em 1978, quando a autora convalescia de um cancro.
Anos mais tarde, com o aparecimento da SIDA, Sontag escreveu A Sida e as suas Metáforas
modelito para o fim de semana
via Clube Literário do Porto |
a banda sonora poderia ser con toda palabra da Lhasa e o filme The Pillow Book*
* que nunca vi mas enfim
Intercidades
galopamos pelas costas dos montes no interior
da terra a comer eucaliptos a comer os entulhos de feno
a cuspir o vento a cuspir o tempo a cuspir
o tempo
o tempo que os comboios do sentido contrário engolem
do sentido contrário roubam-nos o tempo meu amor
preciso de ti que vens voando
até mim
mas voas à vela sobre o mar
e tens espaço asas por isso vogas à deriva enquanto eu
vou rastejando ao teu encontro sobre carris faiscando
ocasionalmente e escrevo para ti meu amor
a enganar a tua ausência a claustrofobia de cortinas
cor de mostarda tu caminhas sobre a água e agora
eu sei
as palavras valem menos do que os barcos
preciso de ti meu amor nesta solidão neste desamparo
de cortinas espessas que impedem o sol que me impedem
de voar e ainda assim do outro lado
o céu exibe nuvens pequeninas carneirinhos a trotar
a trotar sobre searas de aveia e trigais aqui não há
comemos eucaliptos eucaliptos e igrejas caiadas
debruçadas sobre os apeadeiros igrejas caiadas
meu amor
eu fumo um cigarro entre duas paragens leio
o Lobo Antunes e penso as pessoas são tristes as
as pessoas são tão tristes as pessoas são patéticas meu
amor ainda bem que tu me escondes do mundo me escondes
dos sorrisos condescendentes do mundo da comiseração
do mundo
à noite no teu corpo meu amor eu
também sou um barco sentada sobre o teu ventre
sou um mastro
preciso de ti meu amor estou cansada dói-me
em volta dos olhos tenho vontade de chorar mesmo assim
desejo-te mas antes antes de me tocares de dizeres quero-te
meu amor hás-de deixar-me dormir cem anos
depois de cem anos voltaremos a ser barcos
eu estou só
Portugal nunca mais acaba comemos eucaliptos
eucaliptos intermináveis longos e verdes
comemos eucaliptos entremeados de arbustos
comemos eucaliptos a dor da tua ausência meu amor
comemos este calor e os caminhos de ferro e a angústia
a deflagrar combustão no livro do Lobo Antunes
comemos eucaliptos e Portugal nunca mais acaba Portugal
é enorme eu preciso de ti e em sentido contrário roubam-nos
o tempo roubam-nos o tempo meu amor tempo
o tempo para sermos barcos e atravessar paredes dentro dos quartos
meu amor para sermos barcos à noite
à noite a soprar docemente sobre velas acesas
barcos.
Margarida Vale de Gato in Mulher Ao Mar
Mariposa Azual, p.13
2010
da terra a comer eucaliptos a comer os entulhos de feno
a cuspir o vento a cuspir o tempo a cuspir
o tempo
o tempo que os comboios do sentido contrário engolem
do sentido contrário roubam-nos o tempo meu amor
preciso de ti que vens voando
até mim
mas voas à vela sobre o mar
e tens espaço asas por isso vogas à deriva enquanto eu
vou rastejando ao teu encontro sobre carris faiscando
ocasionalmente e escrevo para ti meu amor
a enganar a tua ausência a claustrofobia de cortinas
cor de mostarda tu caminhas sobre a água e agora
eu sei
as palavras valem menos do que os barcos
preciso de ti meu amor nesta solidão neste desamparo
de cortinas espessas que impedem o sol que me impedem
de voar e ainda assim do outro lado
o céu exibe nuvens pequeninas carneirinhos a trotar
a trotar sobre searas de aveia e trigais aqui não há
comemos eucaliptos eucaliptos e igrejas caiadas
debruçadas sobre os apeadeiros igrejas caiadas
meu amor
eu fumo um cigarro entre duas paragens leio
o Lobo Antunes e penso as pessoas são tristes as
as pessoas são tão tristes as pessoas são patéticas meu
amor ainda bem que tu me escondes do mundo me escondes
dos sorrisos condescendentes do mundo da comiseração
do mundo
à noite no teu corpo meu amor eu
também sou um barco sentada sobre o teu ventre
sou um mastro
preciso de ti meu amor estou cansada dói-me
em volta dos olhos tenho vontade de chorar mesmo assim
desejo-te mas antes antes de me tocares de dizeres quero-te
meu amor hás-de deixar-me dormir cem anos
depois de cem anos voltaremos a ser barcos
eu estou só
Portugal nunca mais acaba comemos eucaliptos
eucaliptos intermináveis longos e verdes
comemos eucaliptos entremeados de arbustos
comemos eucaliptos a dor da tua ausência meu amor
comemos este calor e os caminhos de ferro e a angústia
a deflagrar combustão no livro do Lobo Antunes
comemos eucaliptos e Portugal nunca mais acaba Portugal
é enorme eu preciso de ti e em sentido contrário roubam-nos
o tempo roubam-nos o tempo meu amor tempo
o tempo para sermos barcos e atravessar paredes dentro dos quartos
meu amor para sermos barcos à noite
à noite a soprar docemente sobre velas acesas
barcos.
Margarida Vale de Gato in Mulher Ao Mar
Mariposa Azual, p.13
2010
melhor do que ler este poema só mesmo ouvi-lo por Isaque Ferreira, ah maravilha
«Brincar com ossinhos»
poema e título surripiados ~ arquivo de cabeceira
JOGOS
Imagina se o sofrimento fosse real.
Imagina se os velhos tivessem medo da morte.
E se o anão ou a rapariga só com um braço
sentissem mesmo dor? Imagina como seria impossível
viver se algumas pessoas estivessem
sozinhas e com medo a vida inteira.
Jack Gilbert
nas horas em que te amo *
Isto é muito bonito.
Isto é bonito porque eu olho para isto e sinto o sol na pele, e o amarelo, digo amarelo quando olho para a fotografia, amarelo clarinho. E tenho a certeza de que amarelo clarinho não é piroso e penso que espero que não apareça aí um especialista da qualidade porque não me apetece aturá-los. E mais, tenho mais certezas. Por exemplo, tenho a certeza de que, ao dizer que isto é uma fotografia estou francamente em erro, pois isto é um fotograma.
Isto é um fotograma bonito, passo a explicar:
enquanto olho esta imagem e à medida que vou sentindo o sol na pele vejo passar uma série de dias possíveis e a música mantém-se de pé e imagino que as minhas mãos cheiram a laranja duma laranja específica que tenhamos apanhado da árvore dois ou três metros atrás ou ao lado e a laranja soube tão bem soube tão bem e guardaste cascas no bolso das calças agora tingidas e vamos falando e com os dedos concentrados vamos partindo cascas em pedacinhos fazendo formas e rindo porque entretanto as formas deram para a risota e eu agora chego à casa bonita e exclamo que são brancas glicínias brancas e tu sorris eu sei que sorris a olhar e eu não meço a luz simplesmente faço passar o rolo e clique espero que saia dali uma fotografia que jamais será aquilo que acabei de ver mas antes uma surpresa afinal um fotograma de onde possamos tirar dias com sol na pele ou a chuva cá fora e quiçá a coragem da chuva mesmo na pele na língua nos nossos corpos a chuva e depois o sol depois da chuva e este fotograma com pingos a cair das folhas e eu a dizer que este amarelo é daquele amarelo clarinho que eu nunca consigo descrever com estas danadas das palavras e que as pessoas terão simplesmente de confiar em mim e fechar os olhos e pensar amarelo clarinho enquanto olham este fotograma e depois fomos embora mas não antes de vir o dono da casa conversar comigo acerca das glicínias e de roseiras de santa Teresinha e nos desejarmos um bom resto de Domingo e regressarmos à rua da casa da tua mãe dos teus pais a tua casa e almoçarmos alguma coisa bem deliciosa que a tua mãe tenha preparado para o nosso almoço com tanto amor com tanto amor que é preciso repetir com tanto amor não por razões de estilo mas de amor o amor de mãe como tenho a certeza de que a tua mãe terá incluído alguma coisa amarelo clarinho no teu enxoval e garanto que esse amarelo clarinho foi de certeza deste e tenho tanta certeza quanta aquela que é certa sem prova dos nove quando me respondes que dois mais dois são três ao mesmo tempo que ouvimos a canção cujo nome diz que dois mais dois são cinco e eu olho este fotograma e digo amarelo clarinho
* título repescado do baú
a esta pequena dor à portuguesa/ tão mansa quase vegetal *
Tempos Difíceis, João Botelho (1988) fotograma dali |
* Alexandre O'Neill
Da actualidade de alguns escritos
por manuel a. domingos in meia-noite todo o dia
Quando Ernesto Sampaio publicou no Diário de Lisboa, em 19 de Junho de 1987, o texto O Cidadão Liru (posteriormente coligido em Ideias Lebres, Fenda, 1999), talvez não imaginasse a actualidade que o mesmo iria ter passados estes anos.
Ernesto Sampaio considerava, em 1987, que vivíamos num «triste tempo, regido pelo vazio, sem qualquer projecto histórico mobilizador», onde o mundo se encontrava domesticado pela angústia, cepticismo e «narcotizado pela apatia». Estas reflexões demonstram, talvez, que Ernesto Sampaio não ficou indiferente à leitura de Gilles Lipovetsky, nomeadamente do livro A Era do Vazio, publicado em França em 1983. Contudo, o texto de Ernesto Sampaio concentra-se no exemplo português.
Em 1987 estávamos longe de saber o que o futuro nos reservava, nomeadamente o fenómeno dos blogues e das redes sociais. Em 1987 os blogues e as redes sociais eram outros, mas a obsessão «pela «informação», pela histeria de «comunicar», de se exibir gratuitamente perante um público fantasmagórico, insubstancial, que contempla indiferente a gesticulação autista dos novos narcisos pouco sofisticados», era a mesma.
Mas que retrato faz Ernesto Sampaio de Portugal em 1987? Nada abonatório: «o ensino é medíocre e não tem qualquer finalidade humanista, a cretinice é a norma dos programas de rádio e televisão, a imprensa pratica sistematicamente o electrochoque afectivo (…), o obscurantismo, sob todas as suas formas, está na ordem do dia, os conceitos mais vis e reaccionários beneficiam de uma publicidade espaventosa, os poderes montam os dispositivos sofisticados para privar os cidadãos de qualquer hipótese de reflexão e acção.» (o texto é de 1987, lembram-se?).
É claro que, neste cenário, a apatia impera. Por que razão não há reacção? Porque devido a todos estes mecanismos opressores o cidadão «nunca se interroga sobre o que deve fazer (tem, aliás, a sensação de que não pode fazer nada), limitando-se a pensar com inquietação no que lhe virá a acontecer.». Ernesto Sampaio continua: «É uma cultura maluca: prega a iniciativa privada aos desempregados e promete torná-los a todos empresários.» Mas, onde é que eu já vi isto?
Breve ensaio sobre “Breve ensaio sobre a potência” de Rui Costa, por Rui Lage.
via Henrique Fialho
Rui Lage
img: ed. língua morta |
Comecemos pelo começo. “Breve ensaio sobre a potência”, o título que o Rui Costa escolheu para este seu livro de poemas não é um título acidental, nem gratuito. A presença do termo “ensaio” indicia desobediência à compartimentação de géneros, ao mesmo tempo que convoca para junto do poético a modalidade do pensamento – um pensamento vadio, serpenteante, que lida com a diversidade e com o transitório. João Barrento apelidou recentemente o ensaio de “género intranquilo”. Intranquila é adjectivo que assenta bem à poesia de Rui Costa. Os seus poemas não são dóceis, nem submissos, o seu discurso não visa a normalidade, o bom comportamento, o estilo do período: a sua escola é uma escola de exigência, de trabalho, uma escola de amplos e variados recursos que visam a fulguração, quer dizer, visam mostrar o avesso das superfícies do mundo e dos relacionamentos humanos, e não decalcar essas superfícies. Este livro, tal como os anteriores, está cheio de fulgurações. O autor é daquela espécie de poetas que violenta a linguagem, que se compraz em torcê-la, em deslocá-la para os sítios que entende: para sítios que precisam de ser desafiados. Ele também foi, em vida, um semeador de desafios. Em livros anteriores, detectava-se uma vontade de conspurcar o visível e o finito com as heresias da linguagem. Diante deste livro, ainda podemos detectar essa vocação, mas há diferenças. O Rui escolheu aqui a brevidade (estrofes de sete versos formando um texto contínuo) e escolheu o ensaio, isto é, escolheu uma rota sem roteiro, intuitiva, tacteante, que investiga os sentidos possíveis da existência, não tanto para captá-los, como para fazer da investigação o sentido do que é investigado: “e assim ensaiamos o livro entre a/treva e a luz”, lê-se no último poema, em jeito de chave, de que faz eco a belíssima gravura de Maria João Worm reproduzida na capa desta primorosa edição da Língua Morta.
Que dizer da “potência” sobre que versa o “breve ensaio”? A física ensina que a potência é a energia dividida pelo tempo, ou, dito de outro modo, a rapidez com que a energia é transformada. A quantidade de energia diariamente consumida ou dissipada por um ser humano ronda, em média, os 100w. Um televisor transforma, em média, 120w. Nada que não soubéssemos: que a fonte luminosa do ecrã de televisão leva desde há muito a melhor sobre a fonte luminosa do espírito. Onde se lê televisão leia-se, por metonímia, tecnocracia, essa que “Breve ensaio sobre a potência” repudia em toda a linha: “acreditas mais num ficheiro/ Microsoft do que nas salmodias da tua avó” (26, p. 30).
Deslocado da física para um livro de poemas, o conceito de potência convida a equacionar a existência individual em termos de repouso e actividade. Não no sentido mundano, antes no sentido de uma ética do repouso e da actividade, a maneira como se nos apresentam como opções existenciais, em complemento ou em alternativa uma à outra. E leva-nos ainda à questão do livre arbítrio e da liberdade: somos donos da nossa potência? As forças que nos envolvem e que nos dominam permitem orientar a nossa potência, a nossa energia, o nosso trabalho, para o bem comum e para a felicidade? Somos seres fadados para o repouso ou para a “eficiência económica” e para as “preocupações com a excelência” (24, p. 28)? Para o tempo da lentidão ou para o tempo da rapidez? Será esse o sentido último do ser humano: dissipar energia? Será, pelo contrário, consumi-la? Conservá-la? O livro responde: o sentido, o único sentido, é a partilha: “na serra aliamos as tendas, aquecemos/ música. A luz é da tribo, a Grande Pedra/ escuta” (30, p. 34).
Podendo ser definida como a rapidez com que o trabalho é realizado, a potência faz-nos ainda reflectir sobre o tempo. Hoje roubam-nos o tempo. Ou, se quiserem, o tempo foi amputado do tempo, porque estamos reduzidos ao instantâneo, ao imediato, à urgência, à velocidade, às oscilações de temperamento do NASDAQ, do Dow Jones, do PSI 20, da Moody’s. O tempo deixou de ter sentido: deixou de se medir pelo futuro (e em certa medida pelo passado), e tudo é escravizado ao presente, impossível de fixar, de reflectir, de ponderar: “Não tens tempo para saber o que andas/ a contar”, lemos no poema 25 (p. 29). Destituídos de tempo, ficamos destituídos de memória, de cabeça perdida, sem lugar para as imagens: o mundo arrumado num disco externo. Eis, na minha opinião, algumas questões fundamentais colocadas por Rui Costa neste livro que não chegou a segurar nas mãos, mas que pode auxiliar-nos a compreender o mundo que nos coube em sorte.
Uma vez que os interesses do autor deste livro iam muito além da poesia e da literatura, e entravam na ciência, na sociologia e na filosofia, não podemos esquecer a teoria aristotélica do acto e da potência que ressoa no título. Para Aristóteles, a potência é a capacidade de uma coisa se transformar em outra, porque não pode permanecer indefinidamente constante. A única coisa que pode existir sem ser transformada é, para o estagirita, o Bem. Claro que esse é também um predicado de Deus, totalmente acabado e perfeito, que não depende de mais nada a não ser de si mesmo. O contrário dessa perfeição auto-suficiente é o ser humano: somos nós. A semente é o exemplo paradigmático do objecto em potência, que pode, ou não, actualizar ou realizar uma árvore. O ser humano, como a semente, é sempre um ser em potência, um conjunto de possibilidades múltiplas e contraditórias.
A consciência de que o ser humano, sempre incompleto, sempre imperfeito, sempre indeterminado, tende constantemente a ser outro, a apresentar-se com novas características (sem que tenha de haver nisso infidelidade à sua substância), é algo que no meu entender está no cerne deste livro. Mas ensaiar a transformação e realização do ser exige uma incursão na floresta escura da existência, e pede um certo faro: o faro da luz.
Não há, salvo erro, poema deste “Breve ensaio sobre a potência” que dispense a palavra “luz”, símbolo por excelência do que nasce ou está para nascer, do que revela e do que se revela, do resgate, da redenção, da saída das trevas. Este livro começa por nos colocar debaixo das pálpebras o filme de um génesis mínimo e humilde. A luz começa por germinar a partir de coisas em repouso, de coisas elementares, de pequenos seres: água, peixes, plantas, pedras, nuvens. Mal se distinguem entre si os reinos animal, vegetal e mineral. A energia transformada e consumida ainda não é a das coisas complexas. Há uma espécie de nostalgia do momento inicial, do fio de luz originário, que, depois, ao atravessar a lente dos poemas, vai sendo desviado e desfocado. Não tardam a surgir indícios de impureza, primeiras tentações, primeiros desencantos com “caminhos isentos de afecto” (5, p. 9).
Ora, a partir do poema 9, “há um homem que pede para nascer”. Há, neste “Breve ensaio sobre a potência”, um homem a transformar-se, a sair do repouso, a manifestar-se, um homem em trabalho de parto. O que nos primeiros poemas se ensaia é a possibilidade de um novo ser, ou do renascimento num novo modo de ser. Ainda provisório, quase o efeito de uma evaporação, muito anterior à literatura, “este homem/ é um fantasma calmo descansando/ na margem. ainda não é o sonho” (9, p. 13), “por sobre a erva comove-se e/ os bichos escutam-no” (10, p. 14), “entretém-se/ com uma luz que lhe sai da barriga” (10, p. 14). Um homem ainda puro. E já ameaçado, vulnerável, surpreendido no centro da roda (12, p. 16). A partir do poema 13, a luz começa a desfocar, surge uma trama de destruição. A civilização do artifício, despossuída de alma, as ladainhas da eficiência e do “Sucesso” (24, p. 28), procuram abortar o nascimento, fazem adivinhar uma metamorfose violenta e dolorosa: os homens “refugiaram-se da sua própria/ condição de seres predestinados ao amor./ Inventaram mapas e destinos” (14, p. 18), queixam-se da alma que nunca souberam onde fica (17, p. 21), “fabricam-se punhais para matar/ com menos requinte do que as mãos” (19, p. 23). Instala-se a descrença: nas instituições, nas finanças, nos bancos, na tecnologia, na informação, nas universidades: porque só a dor ensina (22, p. 26). A luz que “provoca a primeira/ nostalgia”, do segundo poema do livro, dá lugar, num dos últimos, a“bolinhas de luz com expertise multimédia” (25, p. 29), e “ser adulto é quase impossível no mundo/ só imberbe” (26, p. 30).
Voltando às interrogações. Somos mais livres quando nos arrancamos ao repouso e nos transformamos, a nós e ao mundo, em energia, ou somos mais livres quando escolhemos o repouso, a imobilidade, quando nos furtamos aos ditames colectivos e às metas impostas, quando legitimamente optamos por desistir? “Ser dono dos homens ou escravo de mim”, como se lê no poema 13? Não é segredo que se pode resistir desistindo. Um objecto imóvel possui outro tipo de energia: a energia potencial, e é sempre, por isso, reserva de futuro, promessa de movimento. Temos aqui, apesar de tudo, uma poética da esperança, bem explícita no carpe diem do poema 30: “Vamos aprender a fabricar-nos alimentos,/ esquecer digitalmente o Sucesso, renascer as/ mãos na utopia. Neste mundo deus vai dançar” (p. 34).
É tentador afirmar que todas as misérias e alegrias humanas, toda a energia consumida ou dissipada, cessam com a morte. Na morte, ou em face dela, apenas há impotência. A energia deixa de ser dividida e repartida no tempo, porque o tempo deixa de existir. Quando se esgota a potência de um ser humano, quando toda a sua energia foi transformada, ele não é senão puro acto: na morte, o ser não depende de mais nada, é, de certa forma, algo totalmente acabado e perfeito. Como Deus.
Aqui estamos nós, depois da perda de um amigo, a transformar ainda a sua energia em tempo e em luz.
Rui Lage
giro-giro/bonito-bonito/engraçado-engraçado* é:
foto dali |
na 2ªfeira, no rescaldo das emoções do correntes d'escritas, ver o Rubem Fonseca a passear na rua em Lisboa :)
* escolher adjectivo a gosto e repetir
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