Chegámos ao dia em que nenhum de vós está por cá. Quando partiu o primeiro, não fiquei confusa, fingi que não partira. O segundo foi embora muitos anos depois, quis espancar o mensageiro que me trouxe a verbalização… “o teu avô… acabou de morrer.”. Soube que a avó velhinha não tardaria muito a juntar-se a ele.
Memórias, só as tenho desde os 4 anos e meio, quando os conheci. É assim a vida de emigrante.
O avô materno era o avô dos pães, de cabelo branco e braços a cheirar a farinha. À mesa, puxava a minha cadeira para a beira dele, ficava ali ao topo da mesa a vê-lo comer maçã com pão, um quarto de maçã para mim, outro para ele, com pão. Dizia “cachopita” e eu sentia-me menina amada. Foi o avô dos pães que me ensinou a jogar à macaca. É memória do meu coração num lugar seguro aquela em que o vejo procurar um pauzito e começar a desenhar linhas rectas no chão, procurar uma pedra cuja cor sobressaísse em relação à da terra e instruir-me como se joga. Saltitando.
O avô paterno era o avô do bigode, como o meu pai. Deve ter sido um dos homens mais fortes do mundo. Levava-me para o escritório e dizia que eu era a ajudante, foi com ele que aprendi a palavra factura. Depois, íamos para a cozinha e ele cortava fatias de queijo e de presunto, muito grossas, comíamos por intervalos, com as mãos, um bocadinho de queijo, um bocadinho de presunto, e pão. Servia-se de um copo de pinga para ele e ia buscar o copo grande para me servir de gasosa. No Outono, mostrava-me tudo sobre o azeite, de cada vez, como se fosse a minha primeira visita ao lagar. E dizia, muito grande, aos empregados “a minha neta”.
A avó velhinha, a minha avó velhinha! A avó paterna, a mãe do meu pai, e dos meus tios, e dos meus primos, a mãe de todos nós. A avó velhinha era uma mãe e dava-nos a bênção.
Morreram e ficou cá a avó dos pães, a avó materna. Uma mulher de armas, dizem ainda as pessoas da aldeia. Hoje trago-a muito comigo, o dia trouxe-me os dias com ela. Se foi o calor, se foi algo na luz, se foi tão só a saudade, não sei. Mas fica difícil fingir que não está cá. Queria chegar-me ao portão e chamar “Vó? Vóó?”. Queria lavar o pátio dela, com ela, de pés descalços e vassouras na mão a esfregar com omo. Queria fazer pão-de-ló e pargo no forno com tomate. Pôr a mesa com os guardanapos de pano e as colheres fundas fundas para a canja. Queria ir com ela lá abaixo à adega e escolher uma garrafa de vinho. Seguir até à fazenda e trazer uma couve e dois ou três pêssegos. Queria ir à loja, trazer o que ela tivesse escrito no papelito e dizer “fica na conta da minha avó”. Beber água sôfrega do cântaro depois de termos dormido a sesta no quarto da costura, que é o mais fresco. Queria levar a avó a passear de carro, fazendo a via sacra dos seus antigos clientes do pão, ela descrevendo “aqui era a Corteza, ficou a dever-me 500 escudos de pão, olha que na altura era uma fortuna em pão!”, “olha, deitaram abaixo a casa do Mota, era uma casa farta, havias de ter visto, ias gostar.”, continuar o caminho indicado por ela, deixar os silêncios em paz e ouvir, no final do trajecto, “és tal qual eu”. ‘Vó, tenho saudades tuas.
Tenho saudades.
Foram todos embora em dias de sol.
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