Deitado de costas, os braços cruzados sobre o peito, Kyo fechou os olhos: era essa precisamente a posição dos mortos. Imaginou-se estendido, imóvel, de olhos fechados, a face apaziguada pela serenidade que a morte concede durante um dia a quase todos os cadáveres, como se devesse exprimir-se a dignidade, mesmo dos mais desgraçados. Vira morrer muita gente e, ajudado pela sua educação japonesa, ele pensara sempre que seria belo morrer de uma morte sua, de uma morte semelhante à sua própria vida. Morrer é passividade, mas matarmo-nos é um acto. Logo que viessem buscar o primeiro dos companheiros, matar-se-ia em plena consciência. Lembrou-se, com o coração suspenso, dos discos do gramofone. Tempo em que a esperança ainda tinha sentido! Não voltaria a ver May e a única dor a que ele seria vulnerável era o sofrimento dela, como se pela sua morte ele fosse perante ela culpado. «O remorso de morrer», pensou, crispado de ironia.
La Condition Humaine, Malraux, in Interrogação ao Destino, Malraux de Vergílio Ferreira
não conheço outro mundo, real, que o da gestação do ódio. não me preocupa a dignidade do meu corpo post-mortem. aqui, onde não nos deixamos morrer as nossas mortes, não posso fingir esperança. lamentavelmante, são demasiado semelhantes às suas vidas, muitas das mortes. o ódio. a diversidade. a posse da verdade. a luz! a luz! trazem-nos a luz à porta, para que nos salvemos. para que nos salvemos. nos salvemos. vislumbro, desconfiada, uma espécie de sede, nessas bocas que salivam ao exclamar é a guerra!. e lamento, porque é necessário assustarmo-nos mutuamente? o medo. a culpa. a opção de viver à espera do castigo. como continuamos a conseguir ver as coisas belas, é o que mais me espanta.
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