"Dois ou três cancros de que
vais sabendo «há pouco a fazer»,
o amigo maior de um amigo
brutalmente esmagado debaixo
de um camião. Não, não está a ser
propriamente um Inverno de contentamento.
O corpo já quase não responde
a tanta tristeza. E a casa, devagar,
fecha-se para dentro, implode. Parece
um coração, uma metáfora que te deixa
nos ombros um irrepetível cheiro a merda
e a sombra de um gato que vai morrer.
(«É a vida», deve pensar sem cérebro
- mais feliz - o teu companheiro
de jantar. Já lhe chamaste silêncio,
mas ninguém se chama assim,
ferindo o preto e branco da memória.
Assoa-se, pelo contrário, ao guardanapo
sujo de tinto da casa e acena-te com caspa
da sua vaga imortalidade. Na outra mesa, dois
corpos sussurram o inevitável calão do amor,
Muita gente, afinal, cabe neste mundo.
Da porta do bar saem depois alguns
engates e avós calcinadas
à terceira caipirinha. Um preto de óculos
que bebeu de mais acaba espancado
no passeio, sob o fervor policial do costume.
Custa ver - a vida, outro bar vazio,
sem quadros, onde beijas a ausência,
tudo o que perdidamente desamas
e não vale a pena e se dissipa sem pressa
no copo de cicuta cuja razão desconheces.)
É possível que Joachim Bernhard Hagen
tenha sido um exímio tocador do instrumento
que às vezes preferes. É um modo de acordar,
no fundo, e de perceber na pele a inutilidade
da manhã, os gestos que não serão ainda
esse amplo terreno de morte
- que depois
circunscreves a um poema
e não voltas a dormir. Odeio-te."
Manuel de Freitas
2 comentários:
um poema que entranho estranhando-o, mas que gosto sem saber exactamente porquê.
eu sei porque gosto, e gostar é uma palavra algo estranha para ser relacionada a este poema
enfim...
vem ao encontro do 'minuto'
; *
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