sandra aka margarete ~ acknowledgeyourself@gmail.com

um como dizer

Tríptico II

Não sei como dizer-te que a minha voz te procura
E a atenção começa a florir, quando sucede a noite
Esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
Se enchem de um brilho precioso
E estremeces como um pensamento chegado. Quando,
Iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
Pelo pressentir de um tempo distante,
E na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
Ao lado do espaço
E o coração é uma semente inventada
Em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
Tu arrebatas os caminhos da minha solidão
Como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
Os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
Correr do espaço -
E penso que vou dizer algo cheio de razão,
Mas quando a sombra cai da curva sôfrega
Dos meus lábios, sinto que me faltam
Um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer coisa
extraordinária.

Porque não sei como dizer-te sem milagres
Que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.


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Europe at Night



As Musas Cegas II

Apagaram-se as luzes. É a primavera cercada
pelas vozes.
E enquanto dorme o leite, a minha casa
pousa no silêncio e arde pouco a pouco.
No círculo de pétalas veementes cai a cabeça -
e as palavras nascem.
- Límpidas e amargas.

Eis um tempo que começa: este é o tempo.
E se alguém morre num lugar de searas imperfeitas,
é o pensamento que verga de flores actuais e frias.
A confusão espalha sobre a carne o recôndito peso do ouro.
E as estrelas algures aniquilam-se para um campo sublevado
de seivas, para a noite que estremece
fundamente.

Melancolia com sua forma severa e arguta,
com maçãs dobradas à sombra do rubor.
Aqui está a primavera entre luas excepcionais e pedras soando
com a primeira música de água.
Apagaram-se as luzes. E eu sorrio, leve e destruído,
com esta coroa recente de ideias, esta mão
que na treva procura o vinho dos mortos, a mesa
onde o coração se consome devagar.

Algumas noites amei enquanto rodavam ribeiras
antigas, degrau a degrau subi o corpo daquela que se enchera
de minúsculas folhas eternas como uma árvore.
Degrau a degrau devorei a alegria -
eu, de garganta aberta como quem vai morrer entre águas
desvairadas, entre jarros transbordando
húmidos astros.

Algumas vezes amei lentamente porque havia de morrer
com os olhos queimados pelo poder da lua.
Por isso é de noite, é primavera de noite, e ao longe
procuro no meu silêncio uma outra forma
dos séculos. Esta é a alegria coberta de pólen, é
a casa ligeira colocada num espaço
de profundo fogo.
E apagaram-se as luzes.

- Onde aguardas por mim, espécie de ar transparente
para levantar as mãos? onde te pões sobre a minha palavra,
espécie de boca recolhida no começo?
E é tão certo o dia que se elabora.
Então eu beijo, de grau a degrau, a escadaria daquele corpo.
E não chames mais por mim,
pensamento agachado nas ogivas da noite.

É primavera. Arde além rodeada pelo sal,
por inúmeras laranjas.
Hoje descubro as grandes razões da loucura,
os dias que nunca se cortarão como hastes sazonadas.
Há lugares onde esperar a primavera
como tendo na alma o corpo todo nu.
Apagaram-se as luzes: é o tempo sôfrego
que principia. - É preciso cantar como se alguém
soubesse como cantar.


Herberto Helder
in Ou o Poema Contínuo


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