para ti
para nós
Namoro em Viagem
Faço a barba para amanhecer contigo numa sociedade secreta
com os cheiros e a electricidade de uma madrugada de fronteira
em que o dia parece despertar apenas para marcar a mudança de país
no mapa viário do nosso amor incomum às estradas de turismo
e tomarmos o pequeno-almoço num parque de estacionamento
com velhas carrinhas de caixa-aberta carregadas de alfarroba
e outras vagens cheirosas como as tuas mãos
essas mãos que tangem novenas ao volante deste tempo
em que o presente apenas se adivinha para lá da humidade da manhã
desta cordilheira marítima
quando os céus se abrirem sobre uma baía
e houver tabacarias vendendo marcas de cigarros inusitadas
e sorrisos e serenidades e seriedades com águas-de-colónia baratas
que inspiraremos como se fossem as essências do mar e da liberdade
finalmente reveladas aos homens por motivo de estarmos em trânsito
e não sabermos quanto custará a próxima dormida
e o que fazer com as moedas dos países que vão ficando para trás
à medida que as tuas calças de ganga vão ficando impregnadas de ervas
e pedras das montanhas
à medida que eu vou ficando por toda a parte em postais sem sucesso
amarelecidos por doze solstícios e outras tantas impressões digitais
à beira do fim das férias pequenas de gente loura ou reformada da vida
daquela que guarda apenas uma cicatriz no polegar direito
de tudo quanto fez e não conta para a folha de serviços emprestados
aos prestidigitadores da velha economia
que nem imaginam como São Judas Tadeu nos veio varrer as costas
que haviam limpo cotão cinza e cabelos debaixo da esgotada cama de pensão
cujas molas riam do nosso riso do riso dos do quarto ao lado
ou como tudo começou num anúncio radiofónico
aos incríveis preços de antenas parabólicas do tamanho de pratos de sopa
quando àquelas horas fora impossível comer fosse o que fosse
embora eles como nós calcorreassem quarteirões e estátuas
e esquadras de polícia
e tudo isso antecipasse uma manhã tão desejada quanto esta
com as rodas da mala rangendo de novo sobre o passeio
e a lufada quente de uma pastelaria de subúrbios
incapaz de dizer que não às azias de outros pregoeiros
de auroras sem pêlo nem pele nem tacto nem tudo
o que faz o nosso primeiro olhar um para o outro
e para lá das gelosias de madeira e tinta verde tornada quebradiça
por todos os invernos desde que Picasso regressava a casa de calções
encharcados pela água das poças em que fizera rodar um aro ferrugento
como as noras que fazem correr os rios.
Namoro em Viagem II
Voavam então as pétalas lilases
das árvores sem nome
raízes de sangue
ocre de areia meio argila
como as barras das casas
do Alentejo atlântico.
Corria então o vinho
branco ouro tinto veludo
manchando círculos celestes
no pano hospitaleiro
fumegando dos chocos tresmalhados.
Iam-se então as roupas
à luz dos corpos
lençóis de pele
estendida sobre os arcos de um sorriso.
Ninguém diria então que o mar do vento
não era uma piscina em gestação.
Calavam-se então os esgares humanos
dos cães rastejando ao inusitado
dos cães humanos recusados.
Num passe de dança então improvisado
1080º apoiados no ar
levantámos ferros cortámos amarras
- nem sede nem fome nem amores nem ódios -
e partimos voando
entre pétalas lilases.
De caminho encontrámos formas nunca vistas
noções de sentir
sem pensar sem parar
veloz era o movimento de estarmos quedos
o reverso do luar
prostrando os olhos.
Havia então havia a salamandra
rindo a bandeiras despregadas
sobre a talha dourada da moldura
que abraçava tantos continentes.
E um cágado um anjo
de guarda-pó cinzento
distribuindo milagres
às mãos mais retalhadas
e o bezerro-capote
correndo as hortênsias.
Surgiu então surgiu o escuro
infinitamente negro
sem limites
ele próprio a fronteira das fronteiras.
Acordámos depois dois vultos de sangue
indistintos aos olhos
da madrugada lenta.
Ao abrirmos a porta a janela a escotilha
fomos recebidos saudação no chapéu
por cães imaculados em fardas de mar
comodoros do sonho de dobrar os cais.
por Miguel Martins
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